Defender e aprimorar a política de conteúdo local. Por Haroldo Lima

Defender e aprimorar a política de conteúdo local

Por Haroldo Lima

… a política de conteúdo local precisa ser defendida com firmeza e flexibilidade, para se evitar mais prejuízos, seja por recuo na proteção da indústria brasileira, seja por exigências que terminam reservando mercado para empresas tecnologicamente defasadas…

Publicado no Valor Econômico, edição de 30 de março de 2017

A queda dos preços das commodities, em particular a do petróleo em 2014, a crise política interna e os desdobramentos da Operação Lava Jato são alguns dos fatores com impacto direto na  recessão que  se abate sobre a economia do Brasil.

No setor de petróleo e gás, os ataques espetaculosos da Lava Jato lançaram suspeita sobre a Petrobras, como se a estatal estivesse toda contaminada pela corrupção. A empresa, já premida por dificuldades financeiras, retraiu suas atividades, o que complicou a vida de empresas do seu ciclo produtivo, a indústria para-petroleira.

Neste cenário crítico, a política de conteúdo local precisa ser defendida com firmeza e flexibilidade, para se evitar mais prejuízos, seja por recuo na proteção da indústria brasileira, seja por exigências que terminam reservando mercado para empresas tecnologicamente defasadas.

A cláusula de conteúdo local surgiu na Primeira Rodada de Licitações de Blocos Exploratórios da ANP, em 1999, e visava desenvolver e diversificar a indústria para-petroleira local, preocupação que aumentou após a quebra do monopólio da Petrobras e a criação da ANP.

Em todas as rodadas de licitação, a agência incluiu esta cláusula nos contratos de concessão. Até a 4ª rodada, em 2002, os percentuais de conteúdo local eram apenas declaratórios e serviam como pontuação no certame. A partir de 2003, com a 5ª rodada,  tornaram-se obrigatórios e diferenciados para bens e serviços em blocos terrestres, em águas rasas e águas profundas.

Enfrentando uma desindustrialização precoce e grave, o país não pode dispensar uma política de conteúdo local no setor de petróleo e gás, devendo  aprimorá-la com o exame das controvérsias em pauta.

Ajustes mais rigorosos foram feitos nas rodadas seguintes para certificar o cumprimento desta regra, ainda mais após a descoberta do pré-sal, a implantação do regime de partilha da produção e a criação da empresa 100% estatal, a Pré-Sal Petróleo SA (PPSA), para gerir esse novo modelo contratual.

Os resultados positivos vieram. A participação da indústria nacional nos investimentos do setor saltou de 57% em 2003 para 75% em 2009, ou US$ 14,2 bilhões a mais em serviços e bens contratados de empresas brasileiras e a geração de 640 mil postos de trabalho.

Enfrentando uma desindustrialização precoce e grave, o país não pode dispensar uma política de conteúdo local no setor de petróleo e gás, devendo  aprimorá-la com o exame das controvérsias em pauta.

Uma delas levanta que as concessionárias preferem importar alguns bens e serviços por terem melhor qualidade, preço e prazo de entrega que os congêneres nacionais, mesmo arcando com multas pesadas que totalizaram R$ 315 milhões entre 2013 e 2015, segundo a ANP. Só a Petrobras respondeu por 42% das multas aplicadas em 2014.

As cláusulas de conteúdo local dos contratos da ANP sempre afirmaram a necessária preferência por fornecedores brasileiros cujas ofertas apresentassem preço, prazo de entrega e qualidade equivalentes aos estrangeiros. A defesa do produtor nacional deve ser feita, mas não pode se transformar em prática que favoreça gestões obsoletas e empresas de tecnologia atrasada.

Tem-se levantado também a inconveniência de se manter percentuais obrigatórios para quase 90 itens. Não seria o caso de substituir esses itens por número bem menor de bens, em que já temos capacidade mínima de competir ou possibilidades de fazê-lo? Ou ainda de realçar não bens, mas segmentos industriais, como máquinas, engenharia de projetos, infraestrutura e outros?

Discute-se ainda a opção por um índice global de conteúdo local, que incluísse bens e serviços. Dita alternativa pode levar à distorção de se atingir um determinado índice “global” sem se incorporar nada de máquinas e equipamentos.

Há os que criticam o modelo em vigor como “indústria de multas”. Embora haja exagero nessa formulação, a questão pode nos remeter a outro desafio, o de adotar uma política de conteúdo local que não abrigue a ideia de multa, mas a de incentivo, como procedem alguns países como a Noruega e a China.

A empresa que atingir metas determinadas de conteúdo local é premiada com desonerações, subsídios e regimes aduaneiros vantajosos. Com base nesse expediente, além de outros, esses dois países criaram grande indústria local para-petroleira.

No momento está em curso questão importante. A ANP abriu uma consulta pública para discutir uma solicitação da Petrobras para liberação de todas as exigências de conteúdo local para um navio-plataforma para o campo de Libra, no pré-sal da Bacia de Santos. Esse pedido foi apresentado pela Petrobras em 30 de agosto de 2016 e foi marcada uma audiência pública sobre o assunto para 18 de abril de 2017.

Na argumentação da Petrobras, aparece a afirmação de que “a plataforma só será viável economicamente se o consórcio for liberado das obrigações” de conteúdo local. É o conhecido pedido de “waiver”, ou da desistência em cobrar o que é de direito. E a diretora Solange Guedes, de Exploração e Produção, da antiga equipe da Petrobras, afirmou à imprensa que o consórcio da área de Libra precisa ser liberado completamente desta obrigação e que, referindo-se ao projeto de Libra, “no limite, sem “waiver”, não haverá projeto”! A Petrobras já solicitou também pedido de “waiver” para o navio-plataforma de Sépia, na cessão onerosa da Bacia de Santos.

Agiu com prudência a ANP ao não deliberar de motu próprio sobre tema tão delicado e abrir consulta pública seguida de audiência. O “waiver” para este caso, como para outros, criaria um precedente perigoso para a política de conteúdo local e para o respeito aos contratos firmados.

Por outro lado, correr-se o risco de truncar o projeto de Libra é preço que não se deve pagar. Em casos como tais, espera-se que a consulta da ANP ilumine alguma solução, como a prorrogação do prazo para cumprimento da cláusula, mas mantendo-a, inclusive porque, revogá-la, não só enfraqueceria a política de conteúdo local, como colocaria em questão a regulação da ANP, que pode ser questionada juridicamente.

______________________________________________________________________

* Haroldo Lima é engenheiro, consultor na área de petróleo, ex-deputado federal, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. É membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter