Fuga das virtudes: imersões patológicas. Por Aylê-Salassiê F. Quintão*

FUGA DAS VIRTUDES: imersões patológicas

Aylê-Salassiê F. Quintão*

…O excesso de apologia às virtudes brasileiras pode ter contribuído para transformá-lo  num país antropofágico, devorador de si mesmo. Se plantando, sem grande esforço, tudo dá , o brasileiro pode ter se convencido de  que tudo era mesmo uma questão de jeitinho, forma cômoda de superar dificuldades e contornar a realidade…

Pela coragem, pela imparcialidade, pelo espírito de solidariedade, o Brasil ganhou o direito de falar, todo ano, na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em setembro. Invejado por muitos, transformou-se num parceiro global em  27 organismos internacionais.  Perdeu, contudo,  muitos admiradores, ao tornar-se inadimplente no cumprimento de suas obrigações junto a esses organismos e, logo a seguir, ao ser rebaixado pelas agências internacionais de avaliação de risco  na classificação como País sério e bom pagador.

Saudades do PIB de quase US$ 2 trilhões, da 8ª economia do mundo, projetada para ser a 5ª,  de um índice de desemprego  abaixo de 5% , de saldos comerciais  de US$ 40 bilhões, de reservas de US$ 300 bilhões.  Esses indicadores refletiam a vitalidade de um País organizado, posicionado entre as maiores economias contemporâneas.

O Brasil sempre enfeitiçou os parceiros pelos números macros que exibe:  200 milhões de habitantes,  8 milhões de km2 , 5º maior território nacional contínuo do planeta, 8 mil km de costa marítima, 30 por cento da biodiversidade, dos recursos hídricos e minerais, sol e chuva o ano todo, terras produtivas à perder de vista e um dos maiores produtores de grãos e carnes do mundo. Não tem maremoto, não tem terremoto, não tem vulcão, tufão, não tem neve. Tempestades de granizo e geadas são localizadas, e as enchentes suportáveis.

…Saudades do PIB de quase US$ 2 trilhões, da 8ª economia do mundo, projetada para ser a 5ª,  de um índice de desemprego  abaixo de 5% , de saldos comerciais  de US$ 40 bilhões, de reservas de US$ 300 bilhões. 

O País chegou a ganhar expressão maior que a mística de um “jardim do Éden”, herdada do naturalista Von Martius, Thevet ( La cosmografie universelle...) e outros visitantes estrangeiros: país edênico, terra sem pecado. As características brasileiras, em termos de tamanho, quantidade, extensão originalidade tropical nunca tiveram comparação no mundo. É dotado de tudo para tornar-se, de fato, a 5ª economia do mundo, e  uma das maiores democracias do planeta. Mas, os “viajantes” perceberam também que os brasileiros são “preguiçosos”, e asseguraram para as coroas europeias de que “abaixo do Equador tudo era possível”.

O excesso de apologia às virtudes brasileiras pode ter contribuído para transformá-lo  num país antropofágico, devorador de si mesmo. Se plantando, sem grande esforço, tudo dá , o brasileiro pode ter se convencido de  que tudo era mesmo uma questão de jeitinho, forma cômoda de superar dificuldades e contornar a realidade.  Sem recorrer especificamente ao jeitinho, desde a década de 50 os indicadores macroeconômicos brasileiros passaram a registrar a multiplicação de nossas riquezas.

Um surto de crescimento quase inesperado em menos de uma geração. Contudo, Getúlio tinha um Plano Quinquenal para alavancar o desenvolvimento e os investimentos estratégicos, que ele deu um caráter nacional  substituindo importações e criando a Petrobras, Bndes, Chesf, CSN, Vale, fortalecendo o Banco do Brasil e a infraestrutura do País. Essa base serviu de plataforma para o Plano de Metas de  JK decolar. Foi  aí que começamos a crescer.

Em 1964, o País passava por uma crise econômica e de governabilidade similar a de hoje. Talvez mais grave: 350 greves por ano. Os milicos tentaram  colocar ordem nas coisas.  Homens de caserna, pareciam pouco preparados, entretanto, para a gestão da pluralidade e da diversidade que a  modernidade fazia jorrar na sociedade, como os  direitos humanos, sustentabilidade, globalização, novas tecnologias, e a pobreza crônica, etc. Vinte e quatro anos no Poder, mas continuamos a crescer. Nenhum milico foi condenado por corrupção.

Com o desembarque dos militares , o jeitinho brasileiro ressurgiu no populismo que se instalou. Pulou dos costumes individuais para a vida comunitária e dessa para as esferas públicas, enchendo os olhos  dos espertos que,  desafiando modelos fiscais e orçamentários, desviavam investimentos até chegar à tal economia criativa.  Justificava-se, dizendo que a corrupção era endêmica,  vinha da colonização portuguesa,   do imperialismo  ou das divisões de classe surgidas do patrimonialismo.

Os militares eram também sempre culpados pelos malfeitos recentes.  Na Justiça, a moralidade se dava com duas a três penadas de um juiz que,  sem prender ninguém, inviabilizava eternamente obras essenciais. Enquanto as obras se deterioravam, os processos tramitavam lentos até perder a validade.

Trinta partidos não é expressão de uma democracia social, mas de uma doentia desorganização institucional. O País perdeu o rumo, e nossas virtudes estão evaporando. Nivelados por baixo, sobrevivemos tolerantemente ao caos como equilibristas, assistindo a gestão pública passar de mão em mão entre  a pessoas imersas patologicamente.

As décadas perdidas, o provincialismo e os radicalismos inconsequentes fizeram emergir nas barbas do Estado seres patológicos, com   manias de grandeza e argumentos estigmatizados  para explicar o Brasil. O  retorno à democracia fez ressurgir  velhos  usos e costumes. Lá estava de volta o jeitinho. O que era chamado de acordos entre políticos e partidos, passou  a ser tratado como politicagem, com direito a Mensalão. Pulou para as esferas públicas acobertando a incompetência e abrindo os cofres para os mais astutos. O Estado foi apropriado por meia dúzia de empresas, famílias e grupos de amigos corporativos. O desvio do dinheiro público legou  a recessão, em 2016, com o pior PIB da história do Brasil (- 3,6%). Vozes maliciosas insinuam que a principal causa da retração é a ”falta de empreendedores nacionais”,  grande parte deles atrás das grades.

 “Enquanto procuramos os prejuízos, deixamos de ganhar”. É a opinião de   Eduardo Guimarães – jornalista, editor do blog Cidadania, processado por Sérgio Moro.  “A economia está sendo destruída pela Lava Jato”, diz. Ele fala dos “delírios psicopatas”. As raízes do mal são tão profundas e generalizadas que só um louco teria coragem de fazer o que o juiz Moro está fazendo. Joaquim Barbosa caiu fora. Mas, a psicopatia parece ser uma característica dos políticos e instituições  mais virtuosas da política brasileira. A  chamada  democratização e a conectividade digital permitiu que nossa insegurança, herdada dos jeitinhos, explodisse, levando para a cadeia senadores, deputados, prefeitos, governadores  e até ministros de tribunais de contas.

Trinta partidos não é expressão de uma democracia social, mas de uma doentia desorganização institucional. O País perdeu o rumo, e nossas virtudes estão evaporando. Nivelados por baixo, sobrevivemos tolerantemente ao caos como equilibristas, assistindo a gestão pública passar de mão em mão entre  a pessoas imersas patologicamente.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural

 

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