Chico e Francisco

Não tem nada a ver, juro,
com a visita do Papa, mas lendo a entrevista dominical da presidente da
República à Folha de S. Paulo me lembrei do ditado favorito da minha
amiga, e economista de respeito, Tatiana Pinheiro (que, às vezes, também produz
pérolas inesquecíveis, como a “menina dos ovos de ouro”): “pau que bate em
Chico, também bate em Francisco”. A frase é geralmente citada quando surge uma
assimetria grave na análise, isto é, quando determinado argumento é formulado
sem muita noção de suas consequências lógicas caso a premissa seja alterada.
Lendo o parágrafo anterior
noto que a última frase não é um primor de clareza, mas acredito que o ponto
pode ser facilmente ilustrado pelos inúmeros casos que pululam na fala
presidencial.
Questionada, por exemplo,
sobre o baixo crescimento, a presidente saiu-se com: “O mundo cresce pouco. Não somos uma ilha”.
Trata-se de resposta
aparentemente sensata, mas que não passa no teste de simetria, pois, quando o
Brasil viveu um período de crescimento mais acelerado, em momento algum se
ouviu a presidente dizer que nosso desempenho resultava do bom momento mundial.
Pelo contrário, o mérito era do governo, embora o PIB brasileiro tenha se
expandido a uma taxa pouco inferior à média global. Da mesma forma, quando o país
se encontrou entre aqueles que saíram de forma mais vigorosa da crise dizia-se
que era uma ilha de prosperidade. Somos e deixamos de sê-lo ao sabor das
conveniências do governo.
Igualmente, a presidente
enche a boca para falar da inflação baixa de julho, resultado pontual,
fortemente influenciado pela redução das tarifas de transporte urbano, mas não
veio a público para externar sua preocupação com a inflação alta no primeiro
quadrimestre do ano. A inflação alta é “sazonal”, ou “resultado de um choque agrícola”,
mas a inflação baixa (em um único mês!) é mérito governamental. E, posso
apostar, quando a inflação voltar a se acelerar mais para o final do ano, a
presidente não assumirá a responsabilidade, mas voltará a invocar razões
sazonais e pontuais, que, na visão do governo, só são importantes para explicar
a inflação alta; jamais a inflação baixa.
Segundo a presidente, tudo
também vai bem no campo do gasto público (“O déficit da Previdência é 1% do PIB. As despesas com
pessoal, de 4,2%, as menores em dez anos
.”), apesar do dispêndio,
medido como proporção do PIB, se encontrar no nível mais alto da história
(18,3% do PIB). Já o investimento federal, mesmo vitaminado desde o ano passado
com a contabilização dos recursos do programa “Minha Casa, Minha Vida”, cresce
como rabo de cavalo e responde por modestos 1,3% do PIB nos últimos 12 meses,
insuficiente para atender os requisitos de expansão da infraestrutura.
Na verdade, na primeira
metade deste ano os gastos correntes aumentaram (descontada a inflação) cerca
de R$ 26 bilhões; o investimento caiu R$ 1,8 bilhão. Assim, mesmo o aumento das
receitas, pouco superior a R$ 5 bilhões, não foi capaz de impedir a visível
redução do superávit primário federal (oficial), de R$ 52 bilhões no primeiro
semestre de 2012 para R$ 35 bilhões no mesmo período de 2013. 
Este aumento do gasto,
porém, é ainda “vendido” como uma atuação anticíclica, convenientemente deixando
de lado que, mesmo nos anos bons, em momento algum houve sequer tentativa de
redução da despesa pública, em particular a despesa corrente, que, a valer o
que dizia a Ministra Chefe da Casa Civil do governo Lula, “é vida”. Só a visão persistentemente assimétrica
pode explicar a tentativa de negar o caráter expansionista da política fiscal.

Ao final, a entrevista da
presidente é reveladora: se alguém ainda imaginava ser possível uma correção de
rota no rumo da política econômica, seu conteúdo deve ter convencido mesmo os
otimistas mais renitentes a removerem o proverbial cavalinho da chuva. Vai
sobrar para Chico e também para Francisco.
Visão sempre equilibrada
(Publicado 31/Jul/2013)

18 thoughts on “Chico e Francisco

  1. Gostaria de ter acesso aos dados de investimento descontados os recursos aplicados por estatais e pelo MCMV (supondo se tratar de empresas com receitas próprias, cujas despesas não deveriam ser pagas com dinheiro público). Com certeza seria esse percentual inferior a 1% do PIB, o que dá uma ótima noção do poder de gestão governo. Acumular capital para crescer? Não neste país, onde eficiência e produtividade são pecados mortais e governo é o mais santo de todos os devotos…

  2. Vamos ver o que o governo vai dizer agora com o IPP de 1,33% em junho. BC está preocupado com o câmbio e com razão. A desvalorização do real começou a surtir efeito na inflação (muito rápido por sinal), e ao que tudo indica, é só o começo. Infelizmente.

  3. Uau…que coisa né: se é bom o governo se apropria, se é ruim ele arruma um bode expiatório…genial a descoberta.

    Só lamento que você (aparentemente) tenha descoberto isso só agora, do alto dos seus mais de 40 anos…antes tarde do que nunca!

  4. 50 anos.

    E, para ser claro, o problema não é "descobrir" que o governo faz isto; o que me incomoda é que:

    1) Ninguém se dá ao trabalho de dizer que o rei está nu (no caso, a rainha. Ugh, que imagem horrível);

    2) Este tipo de argumento está presente o tempo todo na análise quermesseira (choques de oferta são todos negativos, etc);

    3) Quem?

  5. Alex, com um dos piores resultados fiscais do setor publico, qual o argumento que resta para os heterodoxos admitirem uma oferta inelástica?

  6. Alex, uma coisa que me angustia, é por que olhamos as mudanças nominais nas taxas de juros, ou mesmo as mudanças reais nas taxas de juros, para saber se a política monetária é expansiva ou contracionista ?

    Sim, essa é a pergunta. Se uma política monetária é perfeitamente prevista (o que quase nunca acontece), então seu efeito sobre a atividade econômica é nulo.

    Por que então não devemos olhar para as expectativas de juros a ex-ante e as políticas monetárias depois de ocorrida ?

    Algo como o gap entre a expectativa da selic para daqui a 180 dias, e a selic efetiva passados esses 180 dias.

    Isso não seria uma medida melhor para saber se a política é expansionista ou contracionista ?

  7. O mundo cresce pouco, mas a China, para salvação do Brasil (e supondo inocentemente que não maqueiam dados por lá), cresceu 7,5%.

    Países que não professam a religião bolivariana, como Chile, Peru e Colômbia, crescem a taxas consistentes e em equilíbrio.

  8. Alex,

    ultimamente, andei trabalhando com os dados de investimento público na tentativa de melhor entender o que está por trás dos números (isto é, qual é a alocação dada ao montante de 1,3% do PIB). Confesso que é um trabalho árduo e chato – as bases de dados são escassas e, quando existentes, exigem uma tarefa de difícil compilação dos dados. Tentei encontrar trabalhos sobre o tema e acabei, por meio de conversa com um amigo economista de banco, chegando na apresentação do econômico do Credit Suisse. Lá, eles fazem uma longa descrição dos dados disponíveis no site do Senado. Existem uns gráficos legais e a base de dados deles deve dar um bom indicativo do que é considerado investimento público no país. Você já viu esses dados? Teria alguma informação/fonte disponível? Pelo que me parece, muito do se define investimento público no país é gasto secundário, que em nada tem relação com acumulação de capital de fato.

    []'s
    PJ.

  9. “Se uma política monetária é perfeitamente prevista (o que quase nunca acontece), então seu efeito sobre a atividade econômica é nulo.”

    Says who? Isso que você disse é uma tolice e nenhum economista monetário que vale o feijão que come acredita nisso.

  10. "Sim, essa é a pergunta. Se uma política monetária é perfeitamente prevista (o que quase nunca acontece), então seu efeito sobre a atividade econômica é nulo."

    Não é verdade. Se houver algum grau de rigidez de preços, mesmo a política monetária antecipada tem efeitos reais.

    Em tese, portanto, não é necessário nada além da diferença da taxa real de juros (ex-ante) relativamente à neutra para determinarmos a postura de política (desde que se saiba a neutra, é claro).

  11. "Não é verdade. Se houver algum grau de rigidez de preços, mesmo a política monetária antecipada tem efeitos reais."

    Não sei se ajuda e é apenas uma sugestão pro amigo anônimo: ROMER, D. Advanced Macroeconomics, Cap. 6 – Nominal Rigidity.

    Gosto do Romer pq é uma leitura leve, por isso defendo e recomendo….

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