“Intervenção Militar já”. Por José Paulo Cavalcanti Filho

“INTERVENÇÃO MILITAR JÁ”

    Por José Paulo Cavalcanti Filho

… Parte desse grupo, sobretudo aqueles mais jovens, não tem ciência do que aconteceu verdadeiramente nos 20 anos de chumbo inaugurados em 1964. Corrupção, por exemplo, naquele tempo foi farta…

Domingo passado, bem cedinho, dois carros de som atrapalharam o sono das vizinhanças do Primeiro Jardim. Com gravações de antigas canções da caserna. Sobretudo o Hino da Independência (Já podeis, da Pátria filhos). Bem na frente, a faixa “Intervenção Militar Já”. Outras, “Pátria e Família”, “SOS Forças Armadas”, “Não à Lei de Imigração”. E “Quem Concorda Buzina”. Quase ninguém buzinou, graças ao bom Deus. Protegendo a trupe de quase 50 cidadãos, alguns carros da Polícia Militar. Não foram necessários, ainda bem. Porque ninguém foi lá protestar. Por não valer a pena, talvez.
Parte desse grupo, sobretudo aqueles mais jovens, não tem ciência do que aconteceu verdadeiramente nos 20 anos de chumbo inaugurados em 1964. Corrupção, por exemplo, naquele tempo foi farta. O que levou o governo, em 1968, a editar o Decreto-Lei 359. Criando uma CGI para promover o confisco dos bens adquiridos de maneira ilícita. Por militares e agregados. Não foi suficiente. A farra continuou. Tanto que, em 1970, o major Waldyr Coelho, Coordenador da OBAN (braço clandestino da repressão), propôs, ao Comando do II Exército, uma OBAN específica contra essa corrupção (documento ACE 16.645-70, AN). A diferença para hoje é que não se sabia dos submundos, então. Por conta da censura.

É bom que os jovens de hoje saibam, antes de pedir a volta do antigo regime. Porque esse passado foi duro demais, sujo demais, vergonhoso demais e indigno demais para ser esquecido tão cedo.

Mortos e desaparecidos foram 434. Todos minuciosamente descritos, vidas e mortes, no Relatório da Comissão Nacional da Verdade – da qual fiz parte. De Abelardo Rausch de Alcântara até Zuleika Angel Jones.
Houve tortura, também. Convertida em política de Estado. Nossas polícias, acostumadas a ser violentas apenas com traficantes e ladrões de carro, tiveram que recorrer a especialistas estrangeiros. Da França, vieram veteranos de guerra da Argélia. Da Inglaterra, das lutas contra o IRA. De lá, veio a novidade das torturas psicológicas. Com as “Five Techniques”. Alternando: 1. Manter a pessoa de pé, por muitas horas, em frente a uma parede; 2. Encapuzar; 3. Sujeitar a grandes barulhos; 4. Impedir o sono; 5. Oferecer pouca comida e água.

Há provas de que pelo menos 1.843 pessoas (o número real é bem maior) foram submetidas a sevícias. Parte delas não sobreviveu…

Dos Estados Unidos, também. Militares brasileiros foram treinados no Latin American Training Center: Ground Division, que os States mantinham no Panamá. Quem quiser ver seus nomes basta ir ao Arquivo CNV 00092.003322/2014-32. O Coronel Paulo Malhães, em depoimento que nos deu, justificou. Sem denotar constrangimentos. Ou arrependimentos. “A tortura é um meio. O senhor tem que me apertar para eu contar. Então, a tortura é válida”.
Há provas de que pelo menos 1.843 pessoas (o número real é bem maior) foram submetidas a sevícias. Parte delas não sobreviveu. Entre as modalidades de torturas físicas estavam Afogamento – derramar água com querosene, amoníaco ou outro líquido no nariz da vítima, já pendurada de cabeça para baixo. Animais – lançados sobre o torturado ou introduzidos em alguma parte do seu corpo. Choque Elétrico – numa das máquinas usadas constava inscrição Donated by the people of United States. Pau de Arara – a vítima ficava suspensa por um travessão, com braços e pés atados, sofrendo afogamento, choques elétricos e sevícias sexuais. Produtos químicos – para fazer o torturado confessar, ao produzir alterações na consciência. Telefone – mãos em concha nos dois ouvidos, ao mesmo tempo, até a perda dos sentidos, em muitos casos com rompimento dos tímpanos e surdez permanente.
Ainda Cadeira do Dragão. Churrasquinho. Coroa de Cristo. Corredor Polonês. Crucificação. Enforcamento. Éter. Geladeira. Palmatória. Poço de Petróleo. Soro da verdade. Sufocamento. E outros.
Essas técnicas estão descritas com detalhes nas páginas 366/375 de nosso Relatório.  É bom que os jovens de hoje saibam, antes de pedir a volta do antigo regime. Porque esse passado foi duro demais, sujo demais, vergonhoso demais e indigno demais para ser esquecido tão cedo.

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Painel com rosto de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil (1964)
        Painel com rosto de alguns mortos e desaparecidos durante a  ditadura militar no Brasil (1964)
  IMAGEM ABERTURA: MONUMENTO TORTURA NUNCA MAIS, DE OSCAR NIEMEYER, INSTALADO EM RECIFE-PE

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jose_paulo_cavalcanti_filho_02José Paulo Cavalcanti Filho É advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade.

jp@jpc.com.br

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