Dólar caro não se compra

Ao avaliarmos decisões, em particular as referentes à política econômica, não é correto comparar o desempenho anterior à sua adoção com o posterior. É, na verdade, necessário desenvolver uma análise complexa: sabendo o ocorrido após a implantação da política, temos também que saber o que teria acontecido caso a decisão não tivesse sido tomada. Esta análise é difícil porque, quando adotamos a decisão “A” ao invés da decisão “B”, não temos como observar o curso dos eventos caso “B” fosse a escolha inicial.

Complicado? Há um bom exemplo, que, imagino, é também bastante familiar.

Em seu filme “A Felicidade Não Se Compra” (It’s A Wonderful Life, 1946), Frank Capra conta a história de George Bailey (James Stewart), que contempla o suicídio após perceber que sua empresa está à beira da falência, acreditando que sua vida não fez sentido. Um anjo (Clarence), atendendo às preces da família, mostra a Bailey como seria o mundo na sua ausência (muito pior, diga-se), convencendo-o a não se matar e conduzindo a um final feliz (com direito a Clarence conquistar as ansiadas asas).

Bailey vive uma situação muito rara: ele sabe como o mundo se comportou com sua presença (decisão “A”) e fica sabendo como se comportaria se pudesse escolher não existir (decisão “B”), o que lhe permite optar pela melhor alternativa. Nós, sem um anjo da guarda, temos que tomar decisões com base em modelos que possam nos dizer o que teria ocorrido se a decisão “B” tivesse sido tomada.

Tomemos o caso do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), recentemente elevado com o objetivo de impedir a apreciação do real. A taxa de câmbio se desvalorizou um pouco em seguida, mas será que podemos realmente atribuir este comportamento ao IOF? Para responder esta pergunta, temos que, como Clarence, construir um simulacro de realidade que nos permita dizer como a taxa de câmbio reagiria caso o IOF não tivesse sido aumentado.

Nós (eu e Tatiana Pinheiro) construímos um modelo que explica a evolução da taxa de câmbio do real contra o dólar como função de quatro variáveis: (1) preços de commodities (índice CRB); (2) apetite global por risco (índice VIX); (3) a taxa de câmbio do dólar contra as principais moedas do mundo (índice DXY); e (4) a diferença entre a taxa de juros nacional e a americana.

Como esperado, o modelo sugere que o real ganha valor ante ao dólar quando o preço de commodities sobe e quando a taxa interna de juros sobe relativamente à externa. Por outro lado se deprecia quando o dólar se valoriza no mercado internacional e quando o apetite por risco cai.

Isto dito, o que ocorre quando introduzimos o IOF no modelo? Estatisticamente falando, nada. A trajetória da taxa de câmbio praticamente não se altera na presença do IOF relativamente a modelos que não incluem o imposto na sua determinação. Nos termos do filme, seria como se o mundo sem George Bailey fosse o mesmo mundo com George Bailey (o que teria levado a um final muito menos feliz). Em outras palavras, o IOF, de acordo com nossas estimativas, é uma política ineficaz para lidar com a apreciação da moeda.

Dado, porém, que não podemos mudar os preços internacionais de commodities, nem o apetite global a risco, e muito menos o valor do dólar relativamente às demais moedas do planeta, a única variável doméstica é a taxa de juros.

Isto dito, o desafio é achar formas de reduzir a taxa de juros sem, ao mesmo tempo, levar a desvios ainda maiores da inflação relativamente à meta. O instrumento é o mesmo que venho insistindo neste espaço: um forte ajuste fiscal, que, a depreender de declarações recentes, ainda não é visto desta forma, pelo menos em certos círculos. A persistir esta postura o câmbio continuará apreciado (exceto por mudanças nas demais variáveis), mas, se você ouvir tocar um sino, é sinal que eu e a Tatiana ganhamos nossas asas.

(Publicado 27/Out/2010)
Economista com asas

31 thoughts on “Dólar caro não se compra

  1. Sem entrar no mérito do modelo (outro post), o artigo está excelente! Dissertação agradável, clara, objetiva e criativa. Essa é uma técnica rara entre economistas.
    Abraços
    Daniel

  2. Bom. Bem didático.

    Seria legal ver a foto do Orelho, com a legenda "Economista com asas".

    Alex, vc tem alguma estimativa de, em média, qual deve ser o aperto fiscal para que se abra espaço para uma redução de um ponto da Selic?

    E, segundo seu modelo, qual seria o impacto de cada ponto da Selic sobre a trajetória do câmbio, ceteris paribus?

    Àos colegas: o Armínio é mesmo carta fora do baralho de um eventual governo Serra?

    Pai Alex.

  3. Pergunta: os impostos sobre a importação, especialmente de produtos não fabricados aqui, tais como celulares e computadores, não ajudam a forçar o real para cima? Isso porque com os impostos seria necessário um real mais alto para convencer as pessoas a comprarem produtos importados na quantidade necessária para equilibrar a entrada de dólares no país. Será que está certo? Desculpe a incompetência do perguntador.

  4. "E, segundo seu modelo, qual seria o impacto de cada ponto da Selic sobre a trajetória do câmbio, ceteris paribus?"

    Dê uma olhada aqui (http://maovisivel.blogspot.com/2010/10/o-iof-funciona.html) Pai Alex.

    Na tabela (coluna GMM) a elasticidade associada ao diferencial de juros é -0.8078, isto é, cada ponto percentual de queda na Selic (é uma aproximação: na verdade esta queda passa pela transformação log (1+Selic/100) e vira uma queda de 0.9 ponto precentual) deprecia o câmbio 0.8%.

    Não é de tirar o fôlego, né?

  5. "Por que nao abrimos a economia? Se a questao é desvalorizar o real basta permitirmos mais importações."

    "os impostos sobre a importação, especialmente de produtos não fabricados aqui, tais como celulares e computadores, não ajudam a forçar o real para cima?"

    Estes comentários foram feitos de forma independente (nenhum viu o comentário do outro porque liberei os dois simultaneamente) e tratam do mesmo problema.

    A resposta, é, sim, impostos sobre importação tendem a apreciar o câmbio real (a famoso Teorema de Lerner) e, sim, uma redução de impostos sobre importação tende a depreciar o câmbio real.

  6. Excelente post Alex.

    Seria possível fazer um post sobre as alterações que o Governo tem feito para alterar a forma de cálculo da Dívida Pública e do Superavit Primário.

    Voce saberia dizer se o pessoal que acompanha os dados da nossa economia faz algum tipo de correção nos dados para filtar o efeito da capitalização da Petro no superavit ou algo semelhante?

    Abraços

    Abraços.

  7. Não rola uma formalização do primeiro trabalho como artigo, PDF e tals…? Sempre ajuda a divulgar.

    Também sinto falta do NPTO, o link daqui era um dos nós do meu "blog walk" diário. 🙁

  8. "Qual seria o problema de trocar o índice do medo pelo EMBI?"

    Risco de endogeneidade Marcelo, i.e., o EMBI (imagino que fale do EMBI Brasil) afeta o real-dólar, mas, presumivelmente, a taxa de câmbio pode também afetar o EMBI (este problema era mais sério há alguns anos, quando a exposição à dívida em moeda estrangeira era maior, mas não deve ter desaparecido).

    Abs

  9. Tive esse problema qdo usei o EMBI.
    Não ficou bonito na foto; correlação cachorro/rabo.

    Mas, por que o index de volatilidade da nasdaq/nyse seria ideal para ilustrar o index do medo? Não seria um index do medo geral? Fiquei com esta dúvida.

    Outra dúvida foi respondida na nota de rodapé 2, pois a autocorrelação entre o CRB e o DXY é factível.
    Texto e artigo supimpa.

    Brados Tatiana!
    Boa Alex.

  10. Alex você vai continuar pregando sozinho no deserto, posição corajosa, diga-se a verdade, pois a muitos anos a única política estabilizadora de verdade no país é a política monetária. No lado fiscal os controles estão travados na posição gastos crescentes, tanto é que já estamos lançando mão de artifícios contábeis para mascarar o déficit nas contas públicas, apesar de recordes de arrecadação,R$ 1 trilhão, já não é suficiente. Por essas e outras que o câmbio deverá continuar sobrevalorizado e já se especula na Selic subindo em 2011. Ficaremos correndo atrás do rabo e queimando nossa industria e nossos empregos.

  11. Martins:

    O VIX é bastante correlacionado com o CDS de Brasil. Poderia entrar como instrumento para lidar com o problema de endogeneidade do CDS/EMBI, mas – se o VIX captura de alguma forma o "apetite por risco" (nao gosto desta expressão – aversão é risco é "primitive" de modelo) – ele também deve servir.

    O VIX mede a vol implícita das ações da Nyse. Um aumento da vol deve estar correlacionado ao "apetite por risco". Empiricamente funciona bem (é robusto a várias das especificações que usamos), mas a magnitude do efeito é pequena (elasticidade na casa de 0.03).

    Abs

  12. Alex e Tatiana,

    Muito bom o artigo, parabéns.

    Quase perfeito, faltando apenas a tirada sobre o uso do 'estilingue' na suposta guerra cambial. Ficou faltando essa pimentinha..

    Doutrinador

  13. Alex,

    Para mim, como investidor, um imposto altera o retorno líquido do ativo.

    Falar que o IOF não altera a taxa de câmbio para mim é o mesmo que afirmar que mudanças marginais no diferencial de juros domésticos e interno também não alteram.

    O que você achou das constatações que fiz no post anterior. Pode descer o cacete se achar necessário, mas eu simplesmente não compro a idéia, pois acredito que o teste é falho (por mudar a natureza da variável) e que contradiz a própria teoria usada para testar.

    Abs

  14. Léo:

    Digamos, por exemplo, que o grosso do ingresso ocorra nos trechos mais longos da curva de juros, de modo que, mesmo com o IOF, a mudança de rendimento seja pequena demais para ter um efeito mensurável sobre o câmbio.

    Ou ainda que parcela signficativa dos ingressos esteja associada a investimento direto. Ou ao financiamento de comércio exterior (todos livre de IOF).

    O resultado seria um efeito tão pequeno sobre o rendimento marginal dos ativos que não teria efeito sobre o câmbio distinto daqueles efeitos não-sistemáticos (o erro do modelo). Ou seja, o IOF seria estatisticamente não-signficante, i.e., nosso resultado.

  15. Se o diferencial de juros é um fator essencial para o movimento entre moedas. Qual a justificativa para a conta de RF, divulgada pelo BC, não possuir um volume que demonstre essa afirmação ?

    Abcs

  16. Vou responder com uma analogia.

    Imagine que, em determinado mercado, importações sejam um substituto muito próximo (perfeito, que seja) de um bem local. O produto importado custa (frete, distribuição, etc, etc inclusos) R$ 10/unidade. O produto nacional vende por R$ 9,99 e, como resultado, não se importa nada.

    Você concluiria que as importações não desempenham nenhum papel na determinação do preço local porque os dados do MDIC não mostram nenhum volume importado?

    Abs

    A

  17. Entendi seu ponto sobre os preços locais e as importações. Porém poderia explicar um pouco melhor qual o efeito que o juros resultaria se esse flow não existe ? É possível justificar via derivativos ?

    Abcs

  18. "Porém poderia explicar um pouco melhor qual o efeito que o juros resultaria se esse flow não existe ?"

    Idealmente o fluxo nem precisaria existir: sob hipótese de mobilidade perfeita, a elevação de juros requer – para eliminação da arbitragem – que o câmbio se aprecie imediatamente. Como o mobilidade não é perfeita, um fluxo (relativamente) acaba ocorrendo.

  19. Voltando ao assunto sobre o diferencial de juros, as compras do Banco Central não afetam o preço dessa paridade ? E portanto essa arbitragem aumentaria e geraria um fluxo ainda maior ? Por que, novamente, esse fluxo na conta de RF não existe ?
    O que você argumentou, se entendi corretamente, é que primeiro o câmbio aprecia e se ainda existir alguma arbitragem o fluxo vem depois, correto?

    Abcs

  20. Alex,

    Entendo seu ponto, mas não acredito o teste seja eficiente.

    Voltando ao exemplo:

    Reduzisse o Bacen, hoje, a remuneração da Selic em 0,x p.p para o investidor estrangeiro, alegando o motivo para tanto a apreciação do Real.

    Após certo tempo, voltasse o Bacen com a remuneração normal para o investidor estrangeiro.

    Teoricamente, sabemos que essa alteração tem de afetar a determinação da taxa de câmbio. O efeito aqui não é ambíguo, pois impacta unicamente na oferta de divisas.

    Entretanto, se a alteração for marginal, ao fazermos o teste com a Dummy pode acontecer muito bem de não conseguirmos identificar esse efeito. Isso pois, no período em análise, a variância relevante para explicar o movimento cambial continuaria sendo a variância do diferencial de juros, e não a variância da variável dummy.

  21. Solução para o câmbio?

    O Professor Adolfo, desata o nó:

    Câmbio de Equilíbrio

    Não faltam especialistas dizendo que o câmbio brasileiro está valorizado. Isto é, na opinião deles, o real está muito caro (frente ao dólar).

    Eu concordo. O real realmente está valorizado. Aliás, a teoria econômica básica já sugere que toda vez que você limita as importações o câmbio tende a valorizar. As importações cumprem um papel importantíssimo na estabilização cambial. Quando o real fica caro, as importações ficam baratas, com as importações baratas as pessoas importam muito, com o aumento das importações ocorre um aumento na demanda por dólares, o aumento da demanda por dólares faz com que o preço do dólar suba, desvalorizando assim o real.

    Resumindo: basta abrir a economia e o real irá se desvalorizar, simples assim.

  22. “Falar que o IOF não altera a taxa de câmbio para mim é o mesmo que afirmar que mudanças marginais no diferencial de juros domésticos e interno também não alteram.”

    Leo, não é isso. A questão é que o IOF altera a arbitragem em alguns ativos. Mas não todos. Então o que acontece quando o IOF aumenta (e a SELIC continua onde estava antes) é uma mudança na composição dos influxos.

  23. “Resumindo: basta abrir a economia e o real irá se desvalorizar, simples assim.”

    Sinceramente, essa frase do Adolfo não é melhor do que a gorô que a quermesse costuma escrever. É ideologia pura, também.

    O mundo não é simples assim. Se você falar sobre câmbio sem explicitar o papel dos fluxos de capitais, política monetária e fiscal, não dá nem para cruzar a porta para o mundo das pessoas sérias.

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