Cotas raciais. Por Meraldo Zisman

COTAS RACIAIS

Meraldo Zisman

 

…para Chá Preto, jamais haveria vaga porque ele não possuía um “pistolão”, não tinha um importante nome de família, e era preto e pobre. O rapaz, entretanto, estudou muito, e foi aprovado em um concurso para acadêmico estagiário da Maternidade da Encruzilhada. Lá, ele aprendeu a fazer partos, curetagens, fórceps, entre outros…

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ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE 
NO DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 26 DE JUNHO DE 2009

Quando estudante de Medicina, ele foi apelidado de Chá Preto. Era filho de um guarda de tráfego e residia com a família em um barraco, perto do lixão da Muribeca. Apesar de a faculdade ser gratuita, seu pai jamais poderia sustentá-lo no curso de Medicina, se não fosse por um extra que ganhava, dando aulas particulares de direção e atuando como despachante.

Quando chegou o quarto ano da faculdade, todos nós começamos a disputar um lugar de estagiário em serviços especializados. Residência Médica ainda não existia. E, para Chá Preto, jamais haveria vaga porque ele não possuía um “pistolão”, não tinha um importante nome de família, e era preto e pobre. O rapaz, entretanto, estudou muito, e foi aprovado em um concurso para acadêmico estagiário da Maternidade da Encruzilhada. Lá, ele aprendeu a fazer partos, curetagens, fórceps, entre outros.

Por outro lado, tornou-se amigo de um obstetra – o Dr. Aprígio – que lhe conseguiu um contrato de médico na prefeitura de uma pequena cidade. Chá Preto era, agora, o Dr. Alcebíades Bezerra. Quando chegou à tal cidadezinha, foi chamado às pressas para atender uma parturiente em um barraco. Rapidamente, pegou as colheres do fórceps e conseguiu retirar a criança, ainda com vida. Do lado de fora, a multidão dava vivas ao doutor. A popularidade de Chá Preto foi crescendo tanto, que ele foi convidado para entrar na política. Sua vocação, porém, era a Medicina. Apesar do parco salário que a prefeitura lhe pagava, ele procurou frequentar congressos médicos e assinar revistas estrangeiras.

Casou com a filha de um comerciante local, uma moça branca, bonita, e educada em colégio de freira. A vida passava, nasceram-lhe dois filhos e morreu seu sogro. Ele vendeu as terras do falecido e, com o dinheiro da herança da esposa, mudou-se com a família para o Recife, montou o consultório, comprou a casa de um usineiro, constituiu uma vasta clientela, e adquiriu um automóvel – uma “limusine” – que era dirigido por um motorista alto, branco e de olhos azuis.

Certa tarde, o carro estancou em plena Rua Nova. E, havia pressa para chegar à maternidade, porque uma das grávidas tinha entrado em trabalho de parto. Desceram do automóvel, nervosos, o motorista e o profissional de Saúde. Nisto, passou pela rua um mecânico. Ao que o médico falou: acho que o defeito é o motor de arranque.

O mecânico levantou o capô do carro e percebeu que o cabo da bateria estava frouxo. Porém, ao ouvir o comentário do médico, ele ficou aborrecido e, dirigindo-se ao motorista, disse com raiva: se não mandar esse nego calar a boca, eu deixo o senhor ir a pé! Quem já se viu um nego dar pitaco em assunto de branco?

Na hora, fez-se um silêncio constrangedor. Apertado o cabo da bateria, o carro pegou na primeira tentativa. Pensativo, o Dr. Alcebíades concluiu: não há diploma no mundo que vença o preconceito!

Agora, eu pergunto: as tais cotas raciais, que estão sendo apregoadas, não contribuem para aumentar o racismo? E lembrei o sacrifício dos pais de Chá Preto para formá-lo em Medicina. Quando dei por mim, estava com os olhos cheios de lágrimas. E os esforços que meus próprios pais fizeram para me formar?

Ah! Que saudade danada eu tenho dos meus velhos.


Meraldo Zisman Médico, psicoterapeuta. É um dos primeiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE).

 

 

 

3 thoughts on “Cotas raciais. Por Meraldo Zisman

  1. Comoveu-me.
    Compartilho suas saudades, não de seu pais (são sempre únicos para cada filho), mas de meu pai e de seus pais, que foram decisivos para que eu seja quem sou.
    Não fui criada por minha mãe, mulata, não por preconceitos, mas porque ela decidiu seguir outra vida.
    Meus avós paternos, em cuja casa nasci, cuidaram de mim. Jamais ouvi qualquer menção à cor de minha mãe. Ou à minha.
    Fui interna em bons colégios e nunca percebi que não havia alunas negras. Nem que não havia freiras negras.
    O tema não pertencia ao meu mundo de então.
    Única referência, quando casei, foi a sogra conversando à boca pequena com a mãe, quando cheguei da maternidade com minha primeira filha, morena como eu: não é tão negra como dizem… Na ocasião nem entendi porque minha vó paterna é tão morena como eu e nasceu em Portugal.
    Com cinco filhos, precisei trabalhar. Trabalhei em bons jornais e jamais senti peso de cor… Advogo, ainda, e também não há o peso da cor. Há respeito pelo meu trabalho. E, muitas vezes, sérios desafios.
    A história de Chá Preto é linda. O preconceito da época vinha da ignorância em que o pobre era mantido.
    Mas o preconceito, da forma que é hoje, é triste novidade para mim.
    Até mais.

  2. Dr. Meraldo Zisman, bom encontrá-lo por aqui…residi vários anos no Recife, trabalhando na SUDENE, inclusive…tive meu primogênito nessa cidade…recordo-me o carinho com que cuidou dele, ao nascer, e me orientou, marinheira de primeira viagem…hoje ele é um lindo homem de cincoenta anos, advogado público, residindo em Curitiba…minhas homenagens pelo oportuno texto…abraços…

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