Muito barulho por nada. Por Alexandre Schwartsman

Muito barulho por nada

Alexandre Schwartsman

…a mudança de atribuições dos instrumentos de política parece para lá de problemática. Nossa própria experiência recente revela as dificuldades de ajuste da política fiscal, o que já é um problema quando enfrentamos a questão de sustentabilidade da dívida. Concretamente, há certo consenso que, na ausência de reforma da previdência, o teto de gastos se tornará insustentável…

Como o  Samuel, fui ler o artigo de André Lara Resende que tem gerado considerável ruído e frequentes perguntas. Bem que queria escapar da velha piada, mas não dá: o texto tem coisas boas e coisas novas; infelizmente as novas não são boas e as boas não são novas.

Há tempos que Lara Resende está, justificadamente, incomodado com as altas taxas de juros vigentes no Brasil e tem proposto explicações e medidas para lidar com a óbvia discrepância entre o nível das taxas reais de juros brasileiras e as observadas em países semelhantes e também os não-semelhantes. Em 2004, por exemplo, publicou (com Pérsio Arida e Edmar Bacha) um ensaio em que atribuía a elevada taxa de juros à “incerteza jurisdicional”.

Sem entrar nos detalhes da tese, a verdade é que esta explicação não foi para a frente. Andrei Spacov (com Fernando Gonçalves e Marcio “ Maria Antonieta” Holland) testou empiricamente a hipótese da incerteza jurisdicional e concluiu que as taxas de juros no Brasil não guardam relação com esta variável; por outro lado, encontrou correlações estatisticamente significativas com a inflação e com a relação dívida-PIB, sugerindo que fatores monetários e fiscais tradicionais “são mais relevantes para explicar o nível da taxa de juros de curto prazo do que o binômio incerteza jurisdicional/inconversibilidade da moeda”.

Mais recentemente, em 2016, lançou outra tese inovadora, baseado em trabalho de John Cochrane a partir da equação de Fisher (que define a taxa real de juros como a diferença entre a taxa nominal de juros e a inflação, isto é, r = i – p): ao contrário da sabedoria “convencional”, segundo a qual a elevação da taxa de juros pelo BC reduziria a inflação, a ação correta por parte da autoridade monetária seria a redução do juro nominal. Dada a taxa real de juros, a redução da taxa nominal, pela equação de Fisher faria com que a inflação caísse, pois p = i – r.

À parte os comentários de Eduardo Loyo, que explicita as condições muito particulares sob as quais a tese de Lara Resende seria válida (caso o BC não respeitasse a regra tradicional de política monetária), cumpre  notar que a evolução da inflação no Brasil daquele momento em diante desmentiu de forma cabal a ideia de que seria necessário reduzir a taxa de juros para baixar a inflação. O juro subiu e a inflação, como sugerido pela “sabedoria convencional”, caiu.

Registre-se, como um aparte que, se a tese de Lara Resende fosse verdadeira, seus seguidores agora deveriam estar clamando pela elevação da Selic, já que a inflação se encontra abaixo da meta. Na ausência de tais clamores, se torna difícil evitar a conclusão que, mesmo entre os apóstolos iniciais de doutrina, ninguém parece muito disposto a defendê-las nas atuais circunstâncias.

A tese agora é outra. Baseado no que se convencionou chamar de Teoria Monetária Moderna (MMT, seu acrônimo em inglês), Lara Resende defende que o BC fixe a taxa nominal de juros (no caso, a Selic) abaixo da taxa de crescimento do PIB nominal (ou, de forma equivalente, que a taxa real de juros seja fixada abaixo da taxa real de crescimento do produto).

Neste caso, o crescimento da dívida pelo efeito da taxa real de juros seria inferior ao crescimento do PIB e o governo não precisaria gerar um resultado primário positivo para impedir que a relação dívida-PIB cresça indefinidamente.

Com efeito, numa primeira aproximação, o resultado primário necessário (h*) para estabilizar a relação dívida-PIB (d) seria dado por

h* ≈ (r-g)d

onde r é, como antes, a taxa real de juros e g a taxa de crescimento real do produto.

De fato, quando r > g, o governo precisa gerar um superávit primário; quando, porém, r < g, até mesmo um déficit primário pode ser consistente com a estabilização da dívida. Dois exemplos podem ajudar.

Suponhamos que a dívida seja 80% do PIB e que este último possa crescer a um ritmo sustentável de 2% ao ano. Caso a taxa real de juros seja 4% ao ano, o superávit necessário para manter a dívida estável ao redor de 80% seria:

h* = (4%-2%)*80% = 1,6% do PIB

Caso, porém, a taxa real de juros seja 1%, o superávit primário requerido para estabilizar a relação dívida-PIB seria:

h* = (1%-2%)*80% = -0,8% do PIB

Daí Lara Resende conclui que “se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento, a dívida não tem custo fiscal, pois não há necessidade de aumento de impostos para seu carregamento”. A conclusão, diga-se, não é verdadeira em geral, pois se o déficit primário observado for superior ao nível crítico (-h>-h*), tanto a elevação de impostos quanto a redução de gastos seriam necessários para estabilizar a dívida, mesmo quando r < g. Não é este, porém, o ponto principal.

Lara Resende reconhece que, ao fixar a taxa de juros num nível inferior ao ritmo de crescimento do PIB, o BC pode perder o controle da demanda, e, portanto, da inflação. Sua recomendação, no caso, é que se use a política fiscal. Em suas palavras

A visão Cartalista da MMT compreende que o excesso de demanda deve ser necessariamente controlado através da política fiscal. A política monetária, além de pouco eficiente, como indica o desaparecimento da Curva da Phillips [grifo meu], quando eleva a taxa de juros acima do crescimento, tem altos custos fiscais e bem-estar”.

Antes de entrar na recomendação propriamente dita, cumpre assinalar que o “desaparecimento da Curva de Phillips”, se real, afeta tanto a política fiscal quanto a monetária. Concretamente, para uma dada expectativa de inflação, a curva de Phillips mapeia para cada nível de hiato do produto (a distância entre o PIB observado e o potencial) determinado nível de inflação.

O nível do hiato depende, dentre outras variáveis, tanto da política fiscal como da política monetária. Todavia, se variações do hiato não afetam a inflação (o tal “desaparecimento” da curva de Phillips), a conclusão inescapável é que tanto a política monetária quanto a fiscal seriam pouco eficientes; não há razão para concluir que apenas uma delas, no caso a monetária, teria perdido a eficácia.

Feita a correção, o cerne do argumento traz pouco de realmente novo.

A mera inspeção do modelo utilizado pelo BC brasileiro para projetar a inflação (e não falo aqui de nada tão sofisticado quanto as versões DGSM, mas sua versão de pequeno porte), como, por exemplo, descrito pelo Relatório de Inflação publicado em junho de 2017, revela que a curva de demanda agregada da economia (a curva IS) “descreve a dinâmica do hiato de produto como função de suas defasagens, da taxa real de juros ex-ante, de variáveis fiscais e externas e de variáveis de controle” [grifo meu].

Posto de outra forma, a modelagem da demanda agregada na abordagem tradicional reconhece a existência de infinitas combinações entre taxa real de juros e resultado fiscal que produzem o mesmo nível de hiato do produto. Caso a política fiscal seja mais apertada, menos será exigido da política monetária e vice-versa, ou seja, o que Lara Resende propõe como inovação nada mais é do que a já conhecida troca (trade-off) entre política monetária e política fiscal. Trata-se uma coisa boa da proposta de Lara Resende, mas que dificilmente poderia ser classificado como coisa nova.

Nos termos muito bem colocados pelo Samuel, o atual arranjo atribui à política monetária a tarefa de controlar a inflação, enquanto a política fiscal lida com a sustentabilidade da dívida; Lara Resende propõe inverter as atribuições, dando à política fiscal o encargo de controlar a demanda (portanto a inflação), enquanto a política monetária ficaria responsável por garantir a solvência da dívida.

A este respeito, porém, como assinalado pelo Samuel “[a] experiência do pós-guerra nos ensinou que a política fiscal é muito lenta, pois depende essencialmente do tempo da política, enquanto a política monetária tem a agilidade necessária para manter a inflação controlada”. Complemento notando que a inflação é tipicamente um problema de curto prazo, enquanto a (in)sustentabilidade da dívida é um fenômeno que se manifesta ao longo de vários anos, o que permite resposta mais lentas do que no caso inflacionário.

Caso, porém, reste alguma dúvida a respeito, basta notar que entre 2015 e 2018 o déficit primário no Brasil caiu de 1,9% para 1,6% do PIB (o resultado recorrente, mais relevante para aferir o efeito da política fiscal sobre a demanda, mostra queda ainda mais lenta, de 2,6% do PIB em 2015/16 para 2,3% do PIB no ano passado), requerendo, entre outras coisas a aprovação de emenda constitucional estabelecendo um teto para o gasto público. Neste meio tempo a Selic subiu de 11,75% aa para 14,25% aa antes de ser reduzida a 6,5% aa, o que ilustra muito claramente a diferença em termos de capacidade de reação de uma e outra.

Neste caso temos uma coisa nova, que, porém, não é boa.

Isto dito, é curioso que Lara Resende invoque a MMT para embasar algo tão corriqueiro como a troca entre política monetária e fiscal para fins de controle da demanda. De fato, como argumenta Paul Krugman em artigo recente, os defensores da doutrina não aceitam esta possibilidade.

Krugman nota que, em condições “normais” (quando a taxa de juros não está sujeita à restrição de não-negatividade), a visão convencional é exatamente a descrita acima, ou seja, “desde que a política monetária esteja disponível, há um intervalo de déficits fiscais consistente com o objetivo [pleno emprego]. A questão então se torna uma de trocas: as coisas que o governo conseguiria comprar com um déficit mais elevado valeriam mais do que o investimento privado perdido devido à taxa de juros mais alta? Frequentemente a resposta será sim. Mas há uma troca”.

Esta, porém, não é a visão da MMT, que parece afirmar que há apenas um nível de déficit consistente com o pleno-emprego, o que só seria verdade quando a política monetária estivesse constrangida por não conseguir reduzir a taxa de juros (muito) abaixo de zero.

Em suma, não há nada de revolucionário, do ponto de vista teórico, nas prescrições de Lara Resende. Sim, a MMT se desvia consideravelmente da teoria macroeconômica tradicional, mas sua sugestão não parece amparada na MMT e sim na abordagem que admite a possibilidade de troca entre a política monetária e a fiscal no que se refere ao controle da demanda agregada.

Por outro lado, a mudança de atribuições dos instrumentos de política parece para lá de problemática. Nossa própria experiência recente revela as dificuldades de ajuste da política fiscal, o que já é um problema quando enfrentamos a questão de sustentabilidade da dívida. Concretamente, há certo consenso que, na ausência de reforma da previdência, o teto de gastos se tornará insustentável ainda antes de levar à estabilização da dívida. Imagine-se, portanto, se fosse necessário ajustar a política fiscal para lidar com as vicissitudes do ciclo econômico.

Neste aspecto não há muito o que discutir: a experiência também mostra que a política monetária não é apenas mais ágil que a fiscal, como também os resultados mostram sua eficiência, pois a inflação caiu. O modelo de médio porte do BC sugere, ademais, que a resposta a uma elevação de 1 ponto percentual na Selic reduz a inflação em cerca de meio ponto percentual ao fim de 4 trimestres, enquanto o efeito (negativo) sobre o hiato de produto tem seu máximo 2 trimestres após a elevação da taxa de juros. Em contraste, com boa vontade, se espera que a reforma da previdência, apresentada em fevereiro, seja aprovada no segundo semestre do ano…

É mesmo muito barulho por nada…

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* ALEXANDRE SCHWARTSMANDOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

@alexschwartsman
aschwartsman@gmail.com

1 thought on “Muito barulho por nada. Por Alexandre Schwartsman

  1. O Banco Central (dos banqueiros) é quem aprofundou e segue aprofundando ou mantendo a crise; com os altos juros cobrados à Divida Pública; com os Hiper juros cobrados às empresas (pequenas e médias) que necessitam contrair empréstimos para investimento; com os astronômicos juros cobrados aos empréstimos privados.

    As empresas começaram a quebrar – indústria, comércio, serviços – a partir do momento em que o BC subiu em demasia os juros, porque não era possível sustentar os altíssimos juros para o crédito empresarial.
    Empresa quebrada contribui para a Previdência ou para a receita fiscal? É incontestável que não contribui. São mais de 30 milhões de pessoas(em idade de emprego) desempregadas e desocupadas(erradamente não consideradas como desempregadas) que não giram a economia.

    Em tempo de crise, nos EUA e na UE, o Banco Central(não o dos banqueiros como acontece no Brasil) põe em circulação a moeda em quantidade necessária e suficiente para emprestar com juros baixíssimos aos Bancos. Os Bancos por sua vez emprestam às empresas a juro baixos, e consequentemente conseguem investir e agigantar a economia. E o país deste modo consegue sair da crise.

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