Brennand, a ‘Vênus’ e eu. Por Fernando Portela

BRENNAND, A ‘VÊNUS’  E EU

FERNANDO PORTELA

Adeus ao grande artista do Recife, Francisco Brennand, meu conterrâneo, que partiu há pouco.

A missão de Brennand era fazer com que as pessoas não se esquecessem do seu Templo

Vênus e eu nos olhamos, apaixonadamente, durante mais de 20 anos. A pele queimada do seu corpo nu, os cabelos femininamente longos, até o quadril, a mão esquerda cobrindo o sexo, sem pudor algum, apenas em função do gesto harmonioso – Vênus tem sido para mim, mais do que uma paixão, uma lembrança perene da mística de Francisco Brennand.

Vênus me foi presenteada no começo dos anos 1970, na única vez em que estive com o artista, e já nem lembro bem qual o assunto que me levou até o Templo, na época ainda em construção. Uma reportagem qualquer, coisas do dia a dia de um jornal. Nem sei se queria falar com o empresário, produtor de cerâmicas para pisos e forrações, ou com o pintor genial (nesse tempo ele era mais conhecido como pintor).

“Gosta de gravuras?”, perguntou Brennand, ameaçando-me com o brinde.

“Não se incomode.”

Um homem muito alto, quase magro, com uma voz mansa e gentil. (Ainda não usava as longas barbas dos últimos anos – observação minha hoje, no dia da sua morte). Encaminhou-se a uma das mesas compridas, de madeira rústica, apoiada em cavaletes, no meio do imenso galpão de olaria – sempre, na minha memória, aquele espaço sobreviveu como um recinto da Idade Média. Abriu com cuidado um pacote empoeirado e de lá tirou uma das poucas cópias da minha amada.

“Para você se lembrar daqui, deste lugar”, ele disse.

Hoje eu entendo que não estava sendo apenas gentil com o jornalista. Sua missão nesta vida é fazer com que as pessoas não se esqueçam daquele lugar.

Pois, nos anos 1970, Brennand não teria por que se preocupar com isso.

 Na verdade, o pintor, ceramista, escultor já se transformara, havia muito tempo, em um ídolo ou, muito mais do que isso, um Mahatma moderno, guru e mestre – referência luminosa – de toda uma juventude às vésperas do golpe militar de 1964.

Ele adquiriu essa condição mítica e quase mística ainda durante o primeiro governo Arraes, quando, meses antes do golpe, assumiu a chefia da Casa Civil do governo. Era, além de artista, o empresário moderno, de acintosa juventude; intelectual, nacionalista, socialista, tropical e talentoso, e tão visceralmente comprometido, a exemplo dos estudantes que éramos, com o sonho de um país igualitário e moreno.

Sua pintura de frutas e folhas, da cor mesmo dos sonhos pós-juvenis, já havia invadido os espaços das artes, até no sudeste dos super críticos, e não poderia haver, no nosso Estado revolucionário, melhor representante da nova mentalidade que destruiria os usineiros despóticos e demais representantes das forças do mal.

O delírio da obra de Brennand, de inspiração fálica.Miguel Arraes, com toda aquela esperteza adquirida na origem pessedista, plantara Brennand à frente do seu governo popular como uma cunha, charmosa e delicada, porém, para fender eventuais recaídas da elite empresarial mais jovem e moderna, que se contrapunha, com alguma timidez, ainda, ao eterno poder dos usineiros arrogantes.

Em nenhum momento, falava-se da origem porventura deífica do artista-empresário, de tão nobre; da sua realidade de moço nascido em palácio, com raízes fincadas na glória da resistência ao invasor holandês; e isso sempre pelas raízes da mãe – sua avó chamava-se (vá contando) Francisca de Paula Cavalcanti de Albuquerque Lacerda de Almeida Brennand –, e entre seus ascendentes figurava ninguém menos do que o Barão de Ipojuca e o Conde da Boa Vista.

No Palácio das Princesas, sede do governo pernambucano, nos idos de 1964, não havia a menor chance de que um assunto dessa natureza virasse conversa. Quem reinava àquela época era mesmo o povo, não fosse o Recife uma cidade moldada em massas populares, em contraposição à vizinha Olinda, às vezes vista como simples memória da nobreza ancestral.

Jamais se ouviria falar, naquele tempo, que o irresistível chefe da Casa Civil do governo Arraes, um Apolo sedutor, ocupasse, com seus ascendentes e descendentes, terras sagradas que haviam pertencido a André Vidal de Negreiros, herói máximo da epopeia pernambucana contra o invasor holandês.

Na verdade, o povo de Arraes parecia identificar-se mais com os próprios holandeses, invadindo os espaços da descendência portuguesa conservadora, convertida em donos de engenhos e usinas.

Brennand poderia – por que não? – estar com o povo, ou não seria o seu “Brennand” a identidade relativamente modesta da família inglesa que imigrara para o Brasil em 1820? Aliás, somente alguém ligado ao povo teria a ideia de transformar a antiga Casa de Detenção, um depósito constrangedor de criminosos, na maravilhosa Casa de Cultura do Recife, hoje parada obrigatória de quem visita a cidade.

Brennand ficou muito pouco tempo, alguns meses, naquele cargo honorífico de chefe da Casa Civil, pois o sonho socialista se desfez e – já por força da mística, quem sabe – quase nada aconteceu com ele, quando os militares tomaram o poder. Os jovens estudantes se dispersaram, no entanto, ou fugiram, ou morreram em guerrilhas ou se humilharam aos vitoriosos.  O Brasil alegre e mulato, de cores e frutos como um mural do Mahatma, se desfizera da noite para o dia. Ficaram algumas daquelas belas paredes como referência, iluminando a cidade do Recife: o mural do aeroporto dos Guararapes e o do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Obras de gênio.

Um homem muito alto, quase magro, com uma voz mansa e gentil.Os deuses, como se vê, não queriam um Brennand político. A volta compulsória à velha olaria de muitos galpões, ou a fábrica de azulejos que a família mantinha desde 1954, fez com que ele, assumindo a parte estropiada do terreno, fundasse, em 1971, a Oficina Cerâmica Francisco Brennand, também conhecida como O Templo. O estado de Pernambuco, e o Recife em particular, ganhavam mais uma glória para expor diante de todos os futuros.

 Muitos anos depois, no final dos anos 1990, voltei ao Templo em várias ocasiões. Dos anos 1980 em diante, o artista iria se revelando como ceramista, escultor. Em algumas dessas visitas levei comigo executivos estrangeiros – eu sentia prazer em observar-lhes o espanto-deslumbramento-êxtase-arrebatamento diante dos assombros que se lhes apresentavam, adquirindo vida pulsante e qualificando seus delírios, pelo resto de suas vidas. Acabei escrevendo, como proposta de um roteiro do Recife, o seguinte trecho:

 “Mas, se sua curiosidade (caro turista) é sócio-antropológica, está bem, vá em frente, ou melhor, siga para oeste em busca de bairros populares – pela Avenida Caxangá, por exemplo. Em meio ao dia a dia sem brilho das pessoas, naqueles rincões tão brasileiros, você acabará chegando a um sonho tropical. Fica no popularíssimo e arborizado – como toda a cidade, aliás – bairro da Várzea. Chama-se, oficialmente, Oficina Cerâmica Francisco Brennand S.A. Oficialmente, porque a empresa é apenas pretexto para apresentar ao mundo (e como o mundo a visita!) o Templo de uma civilização deliciosamente ímpia, e ao mesmo tempo mística, e também erótica, hedonista – magia pura. É a mais obrigatória das visitas do Recife, longe da praia. Não perca. Não perca mesmo. Sobretudo se você dá valor aos que transformam seus sonhos em matéria palpável, em arte. E consubstanciam, aqui na Terra, os desejos fluidos do deus Pã. Mestre Francisco Brennand, o pintor e ceramista, é o criador desse universo absolutamente singular. Ele, o verdadeiro Mago do Id, mantém 2.600 esculturas no espaço que tornou encantado – Galápagos, Atlântida, ruína asteca do ano 3.000.

Há quem veja com insistência, no saudável delírio daquelas peças, uma recorrente inspiração fálica. Haveria peixes-falos, abutres-falos, sapos-falos, soldados-falos e até um falo-falo convivendo em paz no átrio monumental da cidadela, onde luxuriantes cisnes negros, esses sim, biologicamente vivos, chegam a chocar de tão previsíveis.

O bom humor, aliás, permeia toda a obra genial de Brennand, espalhada pelos espaços enfeitiçados da Oficina. Ouvem-se elogios e expressões atônitas em várias línguas. E os estrangeiros têm dificuldade de aceitar que nenhuma daquelas peças esteja à venda. Brennand, raro exemplo de harmonia entre os talentos artístico e empresarial, faz com que suas quimeras sejam sustentadas pelas cerâmicas decoradas que comercializa em todo o País. Mais do que uma atração da cidade, a Oficina pode representar o acordo final entre os vários Recifes, no que têm de invenção e praticidade, trabalho e gozo, matéria e transcendência – a dialética entre a consciência da História e o impulso brutal da Esperança.”

Não tenho dúvida de que Brennand sobreveio de uma outra esfera.Releio agora e percebo o quanto fui superficial e equivocado. É impossível descrever O Templo e a obra de Brennand. Dezenas de críticos, poetas, intelectuais, jornalistas – no mundo todo – já tentaram. O próprio Brennand experimentou uma ou outra auto definição (“esta é a minha carnificina”; “eu sou o Sade que deu certo”), mas, palavras, quando dirigidas àquelas exaltações do espírito, de nada valem.

“Erótico”, eu escrevi. Imagina: Brennand (hoje parece claro, cristalino) é o anti-erótico. Os falos, vulvas, testículos e úteros nascem da Dor do Mundo. Das chagas dos mendigos à porta da Capela Dourada, no centro do Recife; das prostitutas imundas, usando minissaia muito antes de Mary Quant, na antiga Rua da Guia, melancolicamente prostituída. Das multidões deserdadas e dos sertanejos comendo rato assado para sobreviver à seca.

De qualquer maneira, Brennand é para ser visto ao vivo – descrições, já disse, são insuficientes e falsas.

E o certo é que, a partir do momento em que você transpuser os portais do Templo, operar-se-á uma revolução no seu jeito de encarar a Arte – e a vida enquanto contemplação do mundo. Arquétipos, sombras, ancestralidades, anseios fugidios, depressões, tudo o que for inconfessável emergirá aos borbotões da sua pobre alma – e você não mais será o mesmo espectador. Dependendo de como encara a ideia do “ovo primordial”, da sua origem neste planeta, essa perturbação poderá ser bastante escura – mas também poderá ser leve, até; só que haja terapia para equacioná-la! Nem tente.

Não tenho dúvida; você também não tenha dúvida: Francisco Brennand, de 75 anos, é hoje o mais importante e criativo artista visual deste país. Um demiurgo? Talvez, na medida em que os Anjos se aprimoram na faina humana até atingirem a excelência do insight. Brennand é só insight, só intuição. Usa registros eruditos, sendo às vezes didático, provavelmente para não enlouquecer. Ele precisa nominar suas obras de LilithHidraHérculesHália – além da amantíssima Vênus, a minha e todas as suas irmãs –, como única possibilidade de se ater à Terra e não transportar-se de vez aos espaços inefáveis.

Atrás dele, um coro de estudiosos continuará discutindo se sua poesia (por que não chamar de poesia o barro trabalhado a ferro e fogo?) é regional ou universal, se ele é um artista dos trópicos brasileiros ou das galáxias.

Hoje, não tenho a menor dúvida de que Brennand sobreveio de uma outra esfera. Como todos nós, talvez. A diferença é que ele nos mostra o que acontece por lá.

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* Fernando Portela é escritor e jornalista. Um dos fundadores do Jornal da Tarde, vive intensamente os dois papéis há muitos anos. Publicou dezenas de livros, o último dos quais, A velha chama e a negra solidão.

***Este texto foi publicado em julho de 2002 na revista ‘Viver a Vida Alphaville’, de São Paulo. E agora, NO DOM TOTAL

 

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