Parlamentarismo branco. Por Aylê-Salassié F. Quintão

PARLAMENTARISMO BRANCO

AYLÊ-SALASSIÊ QUINTÃO

… é preciso “sacar” que de “Parlamento branco”, como diz o Presidente da Câmara – constitucional, pacífico, solidário, responsável – o do Brasil, como outros na História, não tem nada. Não ter também um “gerentão” na Chefia do Governo é um perigo.

Lá é igual aqui.  Há um momento em que o Parlamento é atravessado por forças estranhas e tramas cabulosas, abortadas do inconsciente freudiano de “reizinhos” e de egos inflados, que negam tudo que prometeram.

Nos Estados Unidos, o mandato de Donald Trump, pela Câmara dos Deputados, já era. Se quiser manter-se presidente, precisa ficar atento ao comportamento e aos sinais dos seus correligionários conservadores no Senado.

Momentos como esses são marcas de quando os parlamentares resolvem dar, eles mesmos, as cartas da governança. Não há originalidade nisso. Foi assim nas revoluções inglesas (Cromwel), na revolução francesa (Danton, Robespierre), no Brexit, no Brasil em 1964 (Goulart), 1992 (Collor) e 2018 (Dilma). A reação intempestiva de deputados e senadores derruba presidentes, reis e imperadores.

Boris Yeltsin, na Rússia, um parlamentar altamente popular que subiu ao Poder por meio do Parlamento, que até o fez Presidente, ao alcançar a chefia do Estado, quis reagir à essas forças obscuras que emergiam da Duma (Assembleia), e passou a contestar o Parlamento. Terminou tendo de renunciar.

Bolsonaro, experiente parlamentar, chegou a confessar sua inaptidão para o chefia do Estado, e, de maneira oportunista, acha que pode dirigir o País a partir do Parlamento. Abrigou-se, num primeiro momento, no ninho do Centrão (um mosaico de partidos, ideologias, parlamentares independentes e, diria, também de inconsequentes), com a promessa de governar com eles. Para se ter uma ideia, 50% das medidas provisórias – que facilitariam a governança, ao contornar leis restritivas vigentes – foram recusadas pelo Congresso.   Bolsonaro tem um estilo similar ao de Trump e o de Yeltsin, defensores de uma democracia autoritária.

Embora curvando-se humilhado em diferentes países, inclusive no Brasil em 1964 e 1979, o Parlamento teve, várias vezes na História, reações imprevisíveis. Nunca foi totalmente confiável. Chefes de Executivo que saíram do seu meio sabem disso: Getúlio, FHC, Lula.  O Congresso é uma máquina trituradora, que acende e apaga de repente. Lembra o “Pacote de Abril de Geisel” que teve de ser reescrito. Em menos de duas horas o Congresso o havia desmontado. Qualquer informação ali espalha-se como um gás pelas duas casas, e com várias versões.

 Os parlamentares tendem a ouvir a opinião pública, a obedecer aos líderes e aos partidos, votando com as bancadas. Mas, independentemente desse Poder formal, existem mosaicos de forças incubadas, fruto de vaidades, do narcisismo, do oportunismo   e dos compromissos camuflados, que terminam aflorando em determinados momentos, contrariando os acordos de líderes, de partidos e de governo, surpreendendo a todos. A Tábata do PDT, por exemplo, votou a favor da reforma da Previdência, quando todo o Partido era contra.

Arrotando sua condição de ex militar, como se pretendesse atemorizar alguém, e de profundo conhecedor do Congresso, Bolsonaro, à semelhança de Yeltsin, tem tentado sempre fazer do Parlamento a sua cozinha de governança.

Ora, executar e gerenciar políticas públicas com o Parlamento – que apregoa sofismaticamente ser a maior instituição democrática do País – carrega algumas virtudes, mas muitos riscos. Integrado por ex-governadores, ex-prefeitos, empresários, latifundiários, representantes corporativos, de minorias, até de milícias privadas, encobre interesses provincianos, quase sempre discordantes do caráter universalizante das decisões presidenciais. Dentro dos partidos, eles aparecem como vieses ou tendências, às vezes, ideológicas, inspirando a desobediência a determinadas posições e compromissos comuns.

Quem vê o PT militando na oposição por aí, não imagina que o partido seja uma colcha de retalhos, tão fragmentado quanto o PMDB ou o Centrão. O Partido emergiu com personalidade quando o populismo trabalhista ganhou a adesão, nos anos 80, dos grupos revolucionários, desmantelados pela repressão. Acreditavam eles tratar-se do tal Partido do Proletariado, apregoado por Lênin. No fundo, as vertentes ideologicamente pluralistas raramente abdicaram de suas convicções. O PSL, de Bolsonaro, é outro, e o Centrão ninguém sabe o que é. O MDB foi quem inaugurou isso, gerando o “troca-troca”. “É dando que se recebe”, dizia o seu Líder Robertão (Roberto Cardoso).

O enviesamento de Bolsonaro o levou a mudar de partido três a quatro vezes. Foi candidato por decisão própria, e acaba de criar um partido quase familiar. Seu inconsciente aflorado revela-o um sujeito conservador, radical, intempestivo, anticomunista, militarista, nepotista, tem simpatia pelos evangélicos, sacrifica os amigos se necessário, e se for conveniente nega, volta atrás e até cancela, como o fez com o aumento para a polícia prometido ao governador do Distrito Federal.

Esse perfil instável, vai levá-lo, em 2020, ao enfrentamento, no Congresso, das incursões sobre as reformas administrativa, fiscal (tributária) e ao desequilíbrio das contas públicas. Pelo menos, dois grandes desafios estruturais (históricos) o acompanham: o patrimonialismo e o burocratismo de Estado, perpetuados em casuísmos, jurisprudências e em decisões coniventes de ministros no Supremo Tribunal Federal que se dizem constitucionalistas.

Max Webber denunciou as normas sociais dominantes. As organizações formais se baseiam em leis em que as pessoas comuns acreditam serem racionais e adequadas aos objetivos compartilhados. Daí a tendência enviesada de não se aceitar leis que refletem os desejos arbitrários de um dirigente.  2020 é o ano de eleições municipais, das tais bases, portanto, do diálogo, do encontro e do desencontro dos vieses.

Mas, é preciso “sacar” que de “Parlamento branco”, como diz o Presidente da Câmara – constitucional, pacífico, solidário, responsável – o do Brasil, como outros na História, não tem nada. Não ter também um “gerentão” na Chefia do Governo é um perigo. Pior ainda é entregá-lo à gestão do Parlamento, aceitando conviver no submundo político das ameaças, sabotagens, e traições mesmo.  É o contribuinte paga calado para manter um quadro desses.

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Aylê-Salassié F. Quintão*Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília

 

1 thought on “Parlamentarismo branco. Por Aylê-Salassié F. Quintão

  1. Comparando a excelente análise do colunista sobre o congresso – composto por representantes dos diversos setores da sociedade – com a mais recente avaliação popular do mesmo congresso, ouso deduzir: o povo não aprova a si próprio…!

    Feliz 2020!!!

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