Extinção de municípios, um desafio para as eleições. Por Aylê-Salassié Quintão

EXTINÇÃO DE MUNICÍPIOS, UM DESAFIO PARA AS ELEIÇÕES

AYLÊ-SALASSIÉ QUINTÃO

… A iniciativa busca reduzir pelo menos 20 mil empregos públicos de livre nomeação, perto de dez mil cargos remunerados de vereadores e tende a prejudicar 24 partidos com representantes nos municípios a serem extintos. Dezenas de prefeitos…

Vingança, tentativa de suborno eleitoral ou realmente um encontro de contas, com pontos de corte irreversíveis? O certo é que municípios com menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria inferior a 10% da receita seriam extintos e incorporados aos vizinhos com indicadores mais expressivos. É o que prevê a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 188/2019) do novo Pacto Federativo, enviada, pelo Executivo, no final de 2019, para ser discutida este ano no Congresso.

Não são poucos os municípios nessas condições. Segundo o IBGE, 1253 deles estão enquadrados nessas condições “primárias”.

Alguns vivem inteiramente de recursos da União pelo fato de, como reduto eleitoral, os políticos locais isentarem os habitantes dos tributos municipais. Outros são muito pobres, e um terceiro grupo revela incompetência mesmo para tratar da coisa pública.

Há prefeito que mal sabe assinar o nome.

Pela PEC, os municípios enquadrados terão até junho de 2023 para comprovar que arrecadam impostos acima de 10% das despesas. A municipalidades que não o fizerem serão extintas como tal até 2025, se a PEC for aprovada. Seria convertidas em meros distritos de municípios próximos

No Nordeste estão mais de 200 municípios nessa condição. 0 Piauí, Paraíba e Rio Grande do Norte seriam os mais afetados, quase 30% deles. O único estado do Nordeste não atingido pela PEC é o Ceará. Em Pernambuco apenas Ingazeira e Itacuruba poderão ter a condição de município revertida ´para distrito. Nas eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro teve ali 297 votos, enquanto Haddad ganhou 2.600 votos. O Governo de defende dizendo que isso nada tem a ver com a proposta da PEC. Em Minas Gerais são 188 unidades, e São Paulo 25. O Rio Grande do Sul não está em situação diferente, mas o IDH dessas populações está acima de 700 pontos.

A iniciativa busca reduzir pelo menos 20 mil empregos públicos de livre nomeação, perto de dez mil cargos remunerados de vereadores e tende a prejudicar 24 partidos com representantes nos municípios a serem extintos. Dezenas de prefeitos. Mas, a decisão surgiu, de fato, de um encontro de contas entre o ministério da Fazenda, a Casa Civil e o Tribunal de Contas da União. De acordo com a Receita, quase 50% dos municípios brasileiros não conseguem arrecadar até 10% dos impostos sobre Serviços (ISS), Predial e Territorial Urbano (IPTU) e de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). O forte da receita desses municípios vem de parcelas do ICMS repassadas pelos governos estaduais, do Fundo de Participação (IR, IPI, ITR), e recursos de programas sociais ou projetos federais eventuais.

A PEC assustou políticos em todos os níveis pelo Brasil. Por quê municípios, primeiro, fazem parte do pacto federativo, tem uma autonomia relativa, relativismo que está preso à sua capacidade de arrecadação e o tamanho da população, níveis nunca devidamente comprovados. Segundo, no município, o voto está preso à enxada – à aristocrática oligarquia local (de Raimundo Faoro e Victor Nunes Leal). Em terceiro lugar, metade do Congresso tem os municípios como redutos eleitorais. Dependem de prefeitos para serem eleitos.

O ano de 2020 é de eleição municipal. A medida, se aprovada, pode gerar uma desordem geral no processo eleitoral nos 5.570 municípios, envolvendo hoje 153 milhões de eleitores. Fica-se em dúvida se esta é a intenção: deixar os políticos de cabelo em pé, diante da possibilidade, que venha a acontecer. Nesses pequenos municípios, sobretudo no Nordeste, foi retumbante a vitória do PT, responsável pela autonomia dessas pequenas unidades administrativas.

As prefeituras municipais são espaços de distribuição de verbas e de empregos locais com dinheiro público. Em geral, e na maioria dos municípios, quando um prefeito é substituído por outro, ele tende a demitir, a maioria dos servidores da gestão que lhe antecedeu, a isolar fornecedores que apoiaram o derrotado, para acomodar os seus amigos e correligionários.

O prefeito é, supostamente, auxiliado pela Câmara de vereadores todos também remunerados e com prerrogativas para fixar o valores dos próprios salários. Antes dos anos de 1960 vereadores não tinham salários. Prestavam serviços à comunidade, pressionando prefeitos de acordo com as necessidades locais. Transformou-se em uma profissão. Sem poder fechar as contas, de conformidade as regras da Responsabilidade Fiscal, os municípios querem ainda substituir a lei das Licitações – Projetos de Lei 1.292/1995, 6.814/2017 com 230 outros apensados. Pretendem também transferir para a União os gastos com aposentadorias e pensões incluindo-os na reforma da Previdência.

Daí que, para todos os políticos acomodados nessas condições, a proposta do Governo é equivocada, segundo a Confederação Nacional dos Municípios e a Frente Parlamentar pelos Municípios. Justificam dizendo que existem especificidades culturais, históricas, e ambientais nessa autonomia. Seria também percorrer o sentido inverso das lutas políticas distritais pela emancipação. As vilas e aglomerados com esses perfis sempre foram esquecidas pelos municípios-sede: algumas não recebiam de volta em obras públicas nem o que arrecadavam. O Fundo de Participação nem se sabia que existia. E, assim, permaneciam indefinidamente, sem alforria.

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Aylê-Salassié F. Quintão*Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília

1 thought on “Extinção de municípios, um desafio para as eleições. Por Aylê-Salassié Quintão

  1. Há alguns anos conheci o municipio de São Gonçalo do Gurguéia no Piauí levado por um amigo estrangeiro que fazia parte duma ONG voltada para a preservação de aves e seus habitats naturais. Na ocasião fizemos uma incursão a uma propriedade que a ONG pretendia adquirir para preservar uma área de reprodução de araras. O prefeito nos acompanhou e toda vez que lhe apresentava um mapa ele alegava que não enxergava direito e não fazia qualquer reconhecimento no mapa. Todavia durante nossa caminhada no campo por diversas vezes mostrou flores e aves no alto das árvores demonstrando enxergar muito bem. Depois do passeio comentei com o amigo estrangeiro que havia uma contradição quanto à real capacidade da visão do prefeito. Ele riu e me disse “é que ele é analfabeto e não sabe ler nada escrito no mapa”. Como pode ser um prefeito analfabeto?

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