Queremos apostar no Brasil? Por Jaime Pinsky

QUEREMOS APOSTAR NO BRASIL?

JAIME PINSKY

… Queremos, de fato, educação, saúde, justiça e segurança para todos? Afinal, apesar de alguns transtornos, nós nos defendemos com escolas particulares, com planos de saúde privados, com bons advogados e com grades, muros, segurança privada e carros blindados…

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PUBLICADO ORIGINALMENTE NA VEJA, EDIÇÃO DE 15 DE JANEIRO DE 2020 (pgs 40-41)

Nas últimas décadas o Brasil passou por muitas e boas. Superado o populismo getulista vieram os militares que, em mais de vinte anos de poder absoluto, muito pouco contestado (os poucos contestadores foram severamente punidos) propuseram-se a mudar o país desde sua base. Ele mudou muito pouco, nem sempre para melhor, a um custo alto para a cultura e a liberdade de expressão. Sucederam-se governos populistas, conservadores, presidentes de todo tipo, mas o país permaneceu quase igual, enquanto que países, antes pobres, desenvolviam-se, modernizavam-se, enriqueciam.

Os “explicadores” do Brasil vêm tentando, sem muito sucesso, encontrar as razões que impedem nosso país de deslanchar e o mantêm pobre e desigual, distante do ideal que traçamos para ele. Esse futuro não aconteceu e permanece cada vez mais distante, uma promessa permanente, um eterno devir.

 Não que não sejam dadas explicações. É que elas não são convincentes. E ficamos sem entender como é que um povo que se considera tão esperto e cordial, vivendo numa terra que sabemos tão generosa, não chegou ainda ao tão ansiado Primeiro Mundo.

Claro que há situações que nos sentimos, individualmente, quase cidadãos do Primeiro Mundo, como quando viajamos para Miami ou Nova York, mesmo que seja só para usar a máscara do Mickey ou assistir a um musical da Broadway.  O mundo vive de aparências e exibir nossa suposta cidadania universal é muito importante. Queremos mostrar que estamos descolados desse Brasil atrasado e pobre que insiste em nos perseguir.

        … Reclamamos contra as ruas inundadas durante as chuvas, mas cimentamos todo o nosso terreno e construímos o dobro da planta aprovada na Prefeitura. Declaramo-nos chocados com a violência no trânsito, mas transformamos as ruas (incluindo as faixas de pedestres) em espaço de competição, onde nos sentimos como El Cid derrotando os mouros…

Por meio de uma ginástica mental tentamos situar nossa pessoa física no Primeiro Mundo, em campo oposto à entidade nacional que continua afundando no Terceiro. Por mais que isso fira a lógica, fazemos parte de uma nação sem a ela pertencer. Para nós, tanto o povo de nosso país, quanto os governantes que nós mesmos elegemos, são “eles”, nunca “nós”. Somos cidadãos do mundo, pairamos acima do mal e só compartilhamos, quando nos convém, algumas coisas que nos parecem ser boas, de nossa identidade brasileira.

Isso nos exime da responsabilidade sobre os desmandos dos governantes. De resto, não é nossa a responsabilidade sobre problemas estruturais do país, nem nos empenhamos seriamente para resolvê-los, pois não utilizamos educação, saúde ou transporte público. Isto é questão a ser resolvida entre políticos e o povo, não temos nada com isso…

Reclamamos contra as ruas inundadas durante as chuvas, mas cimentamos todo o nosso terreno e construímos o dobro da planta aprovada na Prefeitura. Declaramo-nos chocados com a violência no trânsito, mas transformamos as ruas (incluindo as faixas de pedestres) em espaço de competição, onde nos sentimos como El Cid derrotando os mouros.

Somos esquizofrênicos sociais, divididos entre nossa autoimagem generosa e primeiro-mundista e nossa prática egoísta e autoritária. Enquanto nosso espelho nos mostra bons e cordiais, nosso comportamento nos revela preconceituosos e agressivos.

         …O fato de o Estado ter precedido a Nação no Brasil talvez seja o motivo principal de haver um divórcio tão profundo entre Governo e Sociedade…

A verdade é que não assumimos as responsabilidades que cabem a quem pertence a uma sociedade complexa, baseada em contratos sociais que só funcionam se forem cumpridos por todos, o que inclui, é claro, responsabilidade social, produto escasso por estas bandas.

O fato de o Estado ter precedido a Nação no Brasil talvez seja o motivo principal de haver um divórcio tão profundo entre Governo e Sociedade. Outros países, entretanto, começaram de maneira mais difícil ainda e conseguiram formar um amálgama mais homogêneo do que o nosso, em bem menos tempo…

Às vezes explicações muito complexas não nos ajudam a encontrar a solução de um problema. E aqui, recorro novamente à História para buscar um caminho. Fomos o último país ocidental a eliminar a instituição da escravidão. Muita tinta foi gasta para entender o motivo disto ter ocorrido (interesses do latifúndio, pressão dos comerciantes de escravos, etc.) e agora há certo consenso entre os historiadores.  A escravidão não acabou antes porque grande parte da população brasileira – e aqui não estou falando apenas dos grandes proprietários rurais – não queria.  E ela não queria que isso acontecesse porque a escravidão era confortável, as pessoas estavam acostumadas com o seu escravo de ganho, o auxiliar doméstico, a escrava sexual.

Este processo pode voltar a acontecer? Não seria confortável para muita gente continuar a viver num país de terceiro mundo, desde que seja no topo da escala social? Nesse caso o petróleo abundante nos deixaria mais perto de nos tornarmos uma Suécia, ou uma Arábia Saudita?  Meu ponto é que riqueza sem vontade política não muda a História. Não há nações que estão quase afogadas em petróleo e continuam ostentando gritantes diferenças sociais?

Queremos, de fato, educação, saúde, justiça e segurança para todos? Afinal, apesar de alguns transtornos, nós nos defendemos com escolas particulares, com planos de saúde privados, com bons advogados e com grades, muros, segurança privada e carros blindados. A violência, a falta de justiça, de saúde e de educação formal atingem, profundamente, os mais pobres, não adianta tergiversar.

Se quiséssemos encontrar soluções já o teríamos feito. A pergunta que incomoda é: nós queremos, de fato, mudar? Sonhar grande é insuficiente. Mudar implica em dar materialidade a esse sonho, pedra a pedra. Mais difícil do que fazer com que o país se torne rico e poderoso será construir uma nação de cidadãos, com direitos iguais, sem o populismo que tem servido para escamotear as desigualdades, por meio de esmolas concedidas pelo poder. Cabe a nós decidir.

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Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.

jaimepinsky@gmail.com

 

 

1 thought on “Queremos apostar no Brasil? Por Jaime Pinsky

  1. ” Se quiséssemos encontrar soluções já o teríamos feito. A pergunta que incomoda é: nós queremos, de fato, mudar? ”

    É o que eu digo faz tempo, e não tenho 10% da sua capacidade intelectual.

    Gostaria que o senhor escrevesse sobre os anos fhc e o mal incurável q este ser causou ao Brasil.

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