bandeira

Virando bandeira. Por Edmilson Siqueira

VIRANDO BANDEIRA

EDMILSON SIQUEIRA

… aquela turma que insiste em se manter fiel ao falso mito Jair Bolsonaro, não para mais de “virar bandeira” em temas que lhe eram muito caros. Estão sendo obrigados, em nome de uma fidelidade a quem não merece, a mudar de opinião toda hora…

bandeira

Quando eu era criança e o futebol começou a fazer parte da minha vida, “virar bandeira” era uma expressão cara a todos. Significava passar a torcer para outro time que não aquele que todos sabiam que você torcia. Eu me mantive fiel, desde os seis anos, quando meu time foi campeão paulista. E foi fácil: era o time para o qual meu pai torcia. Mas me lembro de alguns amiguinhos que, fascinados com a era Pelé que se iniciava, deixaram de lado os outros três grandes da capital para torcerem pro “time do Pelé”. Mas éramos crianças, então nada era proibido, embora o bullying (palavra que nem existia por aqui) se fizesse por algum tempo. Depois, todos esquecíamos de tudo em formidáveis peladas jogadas com entusiasmo só visto em Copas do Mundo.

Mas, para os adultos, “virar bandeira” era o mesmo que trair um amigo. O cara ficava “falado” na vizinhança, desconfiavam dele, era homem sem palavra etc… Por isso também era muito raro ver, entre os mais velhos, algum “traidor” do seu time de coração.

Essa meio longa introdução é pra dizer que hoje, no Brasil, aquela turma que insiste em se manter fiel ao falso mito Jair Bolsonaro, não para mais de “virar bandeira” em temas que lhe eram muito caros. Estão sendo obrigados, em nome de uma fidelidade a quem não merece, a mudar de opinião toda hora.

A primeira mudança se deu no combate à corrupção, bem antes, aliás, de Sergio Moro não ter mais ambiente no governo e ser obrigado a sair para se manter, aí sim, fiel a seus princípios de honestidade. Foi quando a “rachadinha” dos filhos de Bolsonaro veio à tona. Prática comum em todos (sim, todos!) os legislativos brasileiros, a divisão do salário dos empregados nos gabinetes com o chefe era o meio pelo qual os bolsonaros (o pai e os três filhos) garantiam gordas receitas mensais, muito além do já bom salário que recebem vereadores e deputados no Brasil. O bolsonarista “raiz” teve de engolir a corrupção caseira e ainda acreditar nas desculpas mais esfarrapadas do mundo para tentar justificar a prática desonesta. Fabrício Queiroz, o operador das falcatruas, precisou ser escondido, numa operação que, agora, ainda está revelando obscuros caminhos percorridos por aliados e advogados.

Logo em seguida, veio a defesa da “famiglia” presidencial e a necessidade visceral de, contrariando a lei, ser informado de tudo que se passasse na Polícia Federal e que pudesse atingir sua família ou seus amigos. Foi a gota d’água para a saída de Moro, o maior símbolo anticorrupção que o governo poderia ter. E o bolsonarista “raiz” teve que passar a olhar o ex-juiz, louvado no Brasil e no mundo, como um sujeitinho estranho, oportunista, traidor do (falso) mito. Foi difícil, claro. Nas redes sociais podia-se perceber a divisão no rebanho.

“Sim, Moro saiu, mas Bolsonaro se manteve fiel à nova política”, foi o discurso ouvido logo após o baque. O discurso durou pouco. Ao perceber a iminência de um impeachment, o capitão reformado não teve dúvida em atrair, usando cargos e mais cargos do governo, o famoso Centrão, um enorme grupo de deputados que não estão nem aí com qualquer dignidade: “Se o governo, seja ele qual for, oferecer o que queremos em cargos, comissões e poder, nós apoiamos”, é a máxima norteadora do comportamento do grupo, que vem sendo seguida desde que Sarney (com o perdão da palavra) iniciou a farra com dinheiro público ao ser beneficiado com a morte de Tancredo Neves às vésperas da posse.

Com a aliança com a parte podre do Congresso (que é maioria no Brasil), o bolsonarista “raiz” não teve jeito a não ser sair por aí dizendo que “não deram alternativa pro presidente e ele teve que ceder ao Centrão. Mas não deu ministério algum, talquei?”. Não, ministérios ele ainda não deu. Deu apenas postos estratégicos com orçamentos bilionários pra turma tomar conta…

Antes um pouco, ao chegar a terrível pandemia provocada pelo novo coronavírus, o bolsonarista “raiz” teve de adotar vários discursos sobre a tragédia, todos contradizendo normas científicas, trombando com práticas médicas e enfrentando cuidados sanitários como se fossem coisa do diabo. Além claro, de expor uma ignorância que só o fanatismo pode causar.

Como salientou o pesquisador Renato Sabbatini, em artigo na revista Scientific American, os bolsonaristas têm firme convicção que “o coronavírus foi criado na China e espalhado por Bill Gates, que a covid-19 não é pior que uma gripe, que não é necessário o uso de máscaras porque são inúteis, que a hidroxicloroquina é eficaz contra a doença, que as manifestações antirracistas aumentaram muito a incidência nos EUA, que o aumento de casos é porque passaram a testar mais, que é possível conseguir a imunidade de manada deixando a população se expor ao vírus e que as vacinas vão causar mais efeitos adversos do que a doença, que a vacina chinesa vai implantar um chip no cérebro e a vacina norte-americana vai alterar seu DNA.” E faltou dizer que os bolsonaristas espalham por aí que há muito menos mortes por covid-19 do que os números oficiais porque os hospitais estão falsificando certidões de óbito pra receber mais do governo e que há um monte de túmulos só com placas, sem defunto dentro.

… o bolsonarista “raiz”, de mudança em mudança no seu discurso, sem perceber, já pode ser considerado também um petista “de raiz”: admite corrupção, é um ignorante se assim o poder central determinar, é defensor ferrenho de todas as alianças necessárias à “governabilidade” e…

Voltando à parte política, depois dessa breve passagem pela odisseia da morte que Bolsonaro e sua turma implantaram no Brasil, a amizade colorida com o Centrão vai custar muito mais caro do que podem imaginar as dondocas e os sarados bolsonaristas. O Senado, por exemplo – e provavelmente mancomunado com a Câmara – derrubou um veto do governo ao aumento salarial de servidores públicos. Se mantida a derrubada pela Câmara, vai custar a bagatela de R$ 120 bilhões aos cofres, elevando ainda o gigantesco déficit público e complicando de vez a possibilidade de retomada do crescimento nos próximos anos.

Mas a coisa é pior. O Centrão da Câmara agora tem de contrariar o Senado e manter o veto presidencial, criando atrito com os poderosos lobbies de servidores públicos. Ora, para fazer tamanho “sacrifício”, os senhores deputados não podem sair de mão abanando. E vão exigir, como recompensa “pelo denodo e pela dedicação”, mais cargos e outras benesses do governo, claro. O acordo com o Centrão é como aquele ditado espanhol: você cria corvos e eles vão lhe comer os olhos”. E o bolsonarista “raiz” vai ficar com cara de paisagem perante mais este assalto aos cofres públicos.

Pra encerrar, sabe aquele programa do Lula que, distribuindo menos de 200 reais aos mais pobres (e eles são maioria em várias regiões do Brasil),  comprou quase 80% dos votos dos nordestinos e nortistas e de boa parte do povo pobre do resto do Brasil? Pois Bolsonaro não só o adotou como pretende aumentá-lo para, como Lula e Dilma, ganhar eleições comprando votos dos pobres e mantendo-os pobres para sempre para manter o poder.

Assim, o bolsonarista “raiz”, de mudança em mudança no seu discurso, sem perceber, já pode ser considerado também um petista “de raiz”: admite corrupção, é um ignorante se assim o poder central determinar, é defensor ferrenho de todas as alianças necessárias à “governabilidade” e é a favor de extenso programa de renda mínima, para garantir a eleição mesmo que seja perenizando a pobreza.

E Bolsonaro, que foi eleito com um discurso anticorrupção e antipetista, acabou criando o bolsolulismo que, claro, vai afundar de vez o Brasil.

___________________________________


Edmilson Siqueira é jornalista

 

2 thoughts on “Virando bandeira. Por Edmilson Siqueira

  1. MAGISTRAL!!!, pra variar. Só não concordo que tudo isso “vai afundar de vez o Brasil”: o Brasil já nasceu soçobrado (tipo “parto Leboyer”, mas em água putrefata)…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter