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Quando os juristas dificultam. Por Ives Gandra da Silva Martins

QUANDO OS JURISTAS DIFICULTAM

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

… sábios têm o talento de tornar herméticas disposições feitas para uso do cidadão comum…

Publicado em O Estado de S. Paulo, edição de 3 de setembro de 2020

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Este artigo eu escrevo em memória de meu professor de Direito Processual Penal, Joaquim Canuto Mendes de Almeida. Em suas aulas costumava dizer que os juristas muitas vezes dificultam a compreensão do Direito. O Direito é uma ciência simples que os mestres que o ensinam têm o dom de complicar. Nada mais é do que as regras de convivência, que o povo deve entender para cumpri-las. Quando, entretanto, ensinadas pelos sábios, nem o povo nem os próprios sábios entendem como obedecer-lhes corretamente. Essa é a razão por que os tribunais superiores e constitucionais existem e seus ínclitos magistrados divergem tanto. Nomeados para esclarecer os “administrados” – este é o termo jurídico aplicável aos cidadãos -, normalmente os deixam mais confusos.

Lembro-me de um seu exemplo, quando afirmava que a melhor definição de prisão preventiva ele ouvira de um sambista gaúcho, cujo samba começava: “Nascimento, segura o homem, que este homem quer fugir”. Dizia: “Aí está a razão de ser da prisão preventiva, que vocês terão dificuldade de compreender depois que lerem os tratadistas brasileiros e estrangeiros. O bandido tem de ser preso antes para que não fuja. Todo o resto, como destruição de documentos, obstrução de Justiça, são criação dos juristas para exercício do saber e do poder”. Poderia eu acrescentar: para trazer insegurança jurídica, pois qualquer suspeito, alavancado, misteriosamente, pela imprensa para justificar o encarceramento sem aviso prévio, sofre a pena. As prisões provisórias e preventivas estão hoje banalizadas, como na era dos tribunais populares da Revolução Francesa, banalizada estava a utilização da guilhotina, que se tornara um passatempo popular.

Lembro-me do velho mestre quando afirmava: “O Código de Processo Penal é instrumento válido apenas nas democracias, pois existe para proteger o acusado, e não a sociedade”. Ensinava que, se o povo fizesse justiça com as próprias mãos, os linchamentos públicos seriam diários.

Quando lembro, 62 anos depois de suas aulas, após ter eu exercido durante todo esse período o direito de defesa como advogado provinciano, adaptaria às aulas do professor Canuto – ele se intitulava neto da praça, pois seu avô era João Mendes, que dera o nome ao logradouro central – as lições de Bastiat em seu célebre opúsculo A Lei. Escrevia Bastiat, na primeira metade do século 19, que a função da lei não é fazer justiça, mas sim não fazer injustiça.

Parafraseando o jornalista e economista francês, diria que a função do Poder Judiciário é não fazer justiça, mas sim não fazer injustiça. Se cabe ao Ministério Público sempre na dúvida acusar, o Poder Judiciário não deve tornar-se um órgão homologatório do parquet. Deve, isso sim, não permitir que a injustiça se faça, devendo o advogado, no mais legítimo direito das democracias, que é o de defesa, lutar para que a injustiça não se faça. Não sem razão, a lição da velha Roma é atual, quando se dizia que o máximo da justiça é o máximo da injustiça.

Por essa razão, numa sociedade o Judiciário é um Poder técnico, que não representa o povo, mas a lei; e não tem vocação política, pois esta cabe aos representantes do povo.

Assim é que, a Constituição brasileira tornou os Poderes harmônicos e independentes (artigo 2.°), com atribuições bem definidas, nos artigos 44 a 69 (Poder Legislativo), 70 a 75 (Tribunal de Contas), 76 a 91 (Poder Executivo), 92 a 126 (Poder Judiciário). Acrescentou àquelas atribuições as funções essenciais à administração da justiça, ou seja, Ministério Público (127 a 132) e Advocacia (133 a 135). Se o Judiciário deixa de ser um Poder técnico para ser um Poder político, ingressando na luta ideológica, a democracia corre riscos, visto que, sendo o Poder que pode errar por último, imporia uma ditadura da magistratura.

Mestre Canuto costumava dizer que, normalmente, o que está escrito na lei é o que deve ser seguido, e não as teorias dos sábios que encontram mil e uma interpretações atrás de cada palavra colocada na lei, tendo o talento de tornar herméticas e fechadas só para a compreensão dos iluminados as mais singelas disposições feitas para serem vividas e entendidas pelo cidadão comum.

Creio que, se vivo fosse, o professor Canuto, ao ver os consequencialistas, que flexibilizam de tal forma o que está na Lei Suprema a ponto de admitirem que o Poder Judiciário seja um constituinte derivado, fazendo normas constitucionais e infraconstitucionais, nas pretendidas omissões legislativas – o artigo 103, § 2.º, da Constituição federal proíbe tal conduta -, ou promovendo atos da competência do Executivo, quando tais atos não lhe agradam, certamente se sentiria um monge trapista em suas considerações, pois à época em que ironizava o hermetismo dos juristas, dizendo que atrapalhavam, os Poderes eram realmente harmônicos e independentes, respeitando uns aos outros suas atribuições.

Quantas saudades tenho de meu querido professor!

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IVES GANDRA DA SILVA MARTINS PRESIDENTE DO CONSELHO  SUPERIOR DE DIREITO DA FECOMERCIO-SP, É PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE MACKENZIE E DAS ESCOLAS DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO (ECEME) E SUPERIOR DE GUERRA (ESG)

 

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