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Quem são “negros” para o Min. Lewandowski? Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

QUEM SÃO “NEGROS” PARA O MIN. LEWANDOWSKI? 

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO

… o Min. Lewandowski, por uma decisão monocrática, determinou que elas já fossem distribuídas para as eleições de 2020. A discussão dessa medida é assim urgente e atual. E a urgência é maior porque se sabe quem são os “negros” para o Min. Barroso, mas se ignora quem são eles para o Min. Lewandowski.

  1.  Recente decisão do TSE sobre a atribuição de cotas do Fundo eleitoral para candidatos negros foi recebida por uns com desinteresse, por outros, mormente na imprensa como mais uma ação afirmativa em prol das pessoas de cor. Ela, todavia, previa tais cotas apenas para 2022, o que está ainda distante.[1]

Entretanto, o Min. Lewandowski, por uma decisão monocrática, determinou que elas já fossem distribuídas para as eleições de 2020. A discussão dessa medida é assim urgente e atual.

E a urgência é maior porque se sabe quem são os “negros” para o Min. Barroso, mas se ignora quem são eles para o Min. Lewandowski.

A questão, nas suas premissas fundamentais, é de extrema importância. Com efeito, é, por um lado, um ameaça à brasilidade e, por outro, um “copismo” – pois reproduz um fruto típico do racismo norte-americano. Além de se basear num critério absurdo.

Ainda bem que ela se limitou à distribuição de recursos eleitorais, quando se pretendia mais: cota de candidatos, para amanhã pretender cota de eleitos.

  1. Comece-se a análise pelo critério.

Para justificar a medida, o relator da consulta no TSE, o Presidente deste e eminente Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, aluno de Harvard, salienta que, nas eleições de 2018, houve 52,4% brancos e 47,6% “negros” e aponta que desses “negros” 35,7% eram “pardos” e 10,86% “pretos. Isto seria um sinal inequívoco de um “racismo estrutural” e de uma sub-representação dos “negros” na governança brasileira, decorrente da desigualdade na distribuição pelos partidos de recursos entre “brancos” e “negros”.

O absurdo da estatística salta aos olhos. Todos os que não são “brancos” são “negros”. Ora, qualquer um sabe que há “peles vermelhas” e “peles amarelas” entre os brasileiros, que certamente não são “negros”. Para um brasileiro, “negros” seriam apenas 10,86%.

  1. Esta visão absurda trouxe o ilustre Ministro de uma das más contribuições norte-americanas – elas existem, sim – para o mundo.

Com efeito, após a extinção da escravidão, brancos racistas norte-americanos criaram o expediente da segregação: “iguais, mas separados”. Esta apenas foi fulminada na segunda metade do século passado, na famosa decisão Brown versus Board of Education, tomada pela Suprema Corte, em 1954.

Para efetivar tal separação, os Estados dominados pelos racistas brancos tiveram de estabelecer um critério de distinção entre o “branco” e o “não-branco”. Adotaram a teoria da “gota de sangue”. Quem descendesse, ainda que por um trisavô, de “sangue negro” seria “negro”.[2]

O absurdo é flagrante. Imagine-se uma pessoa que tenha entre os avós um avô negro os demais brancos. Teria – segundo o raciocínio sanguíneo – 25% de “sangue negro” e 75% de “sangue branco”. Seria logicamente mais “branco” do “negro” e estaria mais corretamente entre os “brancos” do que entre os “negros”.

  1. A tese racista norte-americana é de importação recente por parte de adoradores do Tio Sam e de alguns “espertos” que, criticando a escravidão – sem dúvida uma mancha na história humana – pedem vantagens, reparações, por parte dos “brancos”. Estes seriam devedores em razão do pecado original da escravidão. Mesmo que sejam imigrantes pobres que nunca tiveram, nem seus ancestrais, sequer um escravo.

Para esse racismo americanista não há mestiços, mas para os brasileiros eles sempre existiram e, na verdade, sempre foram considerados do povo brasileiro. O brasileiro sabe e sente que tem ou pode ter um “pé na senzala”, como afirmou um ex-Presidente da República, falando de si próprio.

A exceção existe para uns poucos que tenham uma genealogia bem definida – e quand même

Qualquer brasileiro de bom senso sabe que a miscigenação – não é preciso ler Gilberto Freire para sabê-lo – é uma realidade já vivida no passado e acentuada nos últimos cento e cinquenta anos com a imigração de italianos, judeus, alemães, japoneses, chineses, afora o núcleo inicial de portugueses e de espanhóis, mais os indígenas e os africanos.

5. O caráter destrutivo da tese importada ameaça a brasilidade, ou seja, o vínculo pessoal que justifica a existência do Brasil. A brasilidade é uma, vem essencialmente de uma vontade viver em comum e de agir como uma comunidade única. O Brasil não é uma “confederação” de “raças” – perdoem-me a rata, pois sei que cientificamente não existem raças – ou melhor de “etnias”. Não se fraciona por “etnias”. A melhor prova disto se manifesta na torcida pela “amarelinha” nos campeonatos mundiais, e, até, no uso da “amarelinha” por brasileiros em viagem pelo exterior. Há um orgulho de ser brasileiro e de se fazer reconhecer como brasileiro.

  1. No plano das instituições, a distinção entre “brancos” e “negros” – além de proscrita pela Constituição que proíbe “distinções de qualquer natureza” e obviamente a de cor – é um despautério.

Cabe aqui citar Mandela. Este, no discurso que proferiu perante a Corte Suprema da África do Sul, em Pretória, em 20 de abril de 1964, salientou:

 “A divisão política, baseada na cor, é inteiramente artificial e, quando ela desaparecer, também desaparecerá a dominação de um grupo de cor por outro.”

7. Enfim, qualquer operador do direito sabe que desde que surgiu o constitucionalismo e com ele a democracia moderna, a representação não está mais a serviço de grupos ou de figuras poderosas, não é uma procuração de pessoa ou grupo determinado, como o era na Idade Média – mas sim a serviço do interesse geral.

A eleição é feita para que a governança seja exercida pelos representantes do todo que é o povo aos quais é dado exprimir a vontade geral da nação. Não para defender interesses particulares. É isto que já ensina a Declaração de 1789, combinando o ideário de Montesquieu quanto à representação, com a lição de Rousseau. Para este a “vontade geral” é a que visa ao interesse comum, não se confunde com a “vontade de todos”, uma soma de vontades que visam a interesses particulares e assim se contradizem (Contrato Social, Livro II, cap. 3º).

 Na democracia, a representação destina-se a servir à “vontade geral”, não ao interesse de “minorias”, ou “etnias”. Todo representante representa todo o povo, não apenas os seus eleitores. Ontem todo jurista o sabia. No século XVIII, Burke já o ensinava.

As ações afirmativas necessárias ao Brasil não podem servir para destruir o Brasil, mas para fortalecer a brasilidade, formando democratas e dando melhores condições de acesso à instrução, cultura, saúde, condições adequadas de vida aos mais pobres –  pretos, brancos, mulatos, etc. – sem levar em conta a cor da pele. Não para destruir o povo brasileiro, dividindo-o em “etnias”, não para que interesses de grupos, por meritórios que sejam esses interesses, prevaleçam sobre o interesse geral. Cada representante não representa exclusivamente os seus eleitores ou a sua “etnia”, ou uma “minoria” qualquer, mas o povo brasileiro.

Quando deixar de existir o povo brasileiro, o Brasil não será mais que um ente geográfico.


LEIA TAMBÉM: O TSE e os “negros”. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho –  Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

 

SP 10/09/2020


[1] Já a discuti num artigo intitulado O TSE e os “negros”, que forma agora incorporo neste trabalho. O TSE e os “negros”. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

[2] Cf. Uma gota de sangue – História do Pensamento Racial de Demétrio Magnoli (Ed. Contexto, SP 2009), obra em que muito aprendi.

 

3 thoughts on “Quem são “negros” para o Min. Lewandowski? Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

  1. Compartilhei novamente porque só li neste blog este assunto. Assiti o Ministro do STE discorrer sobre o assunto depois de haver lido os dois artigos. E nenhum comentário dos 2 jornalistas sobre a fala do Ministro Barroso. Este “novo normal” do STE vai se eternizar?

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