Battisti, uma ópera

Por Josué Machado

No libreto da quase ópera que seria escrito pelo então advogado e hoje ministro Barroso sobre Battisti, Luiz Inácio e Suplicy teriam papéis menores

 Pelo jeitão da coisa, parece que a revista Veja viajou na maionese ao “descobrir” que Luiz Inácio estaria planejando pedir exílio político ao governo italiano, baseado na necessidade e no fato de sua mulher, Marisa, e os filhos terem cidadania italiana já faz tempo. Aliás, por que será que teriam pedido tal cidadania?

Não faz mal, mas essa história traz a lembrança outra, a do cidadão italiano Cesare Battisti, que obteve asilo político no Brasil concedido exatamente por Luiz Inácio. Uma história com evidentes traços de ópera, talvez bufa, em que se misturam o ex-senador Eduardo Suplicy e o agora ministro do STF Luís Roberto Barroso.

Tudo isso como bom pretexto para para estudar um problema de preposição perdida em texto quase erudito de barrosa autoria.

Essa quase ópera battistínica não chega a ser um Parsifal, o inocente casto exaltado por Wagner; nem carrega traços do heroísmo expresso no Nabucco de Verdi; tampouco os heróis correm o risco de ser condenados à danação eterna como o Fausto de Gounod. Mas o libreto daria para o gasto.

Resumo da ópera: pouco mais de dois anos antes de ser aprovado ministro do STF, o advogado Luís Roberto Barroso defendeu o italiano Cesare Battisti, acusado de ter matado quatro pessoas na Itália; Battisti refugiou-se no Brasil alegando ser perseguido político. Colou.

 A Justiça italiana o acusara de homicídio comum e pediu-lhe a extradição. O STF brasileiro recomendou que fosse extraditado, mas o então presidente Luís Inácio ignorou a recomendação e, no último dia de seu governo, negou a extradição. Battisti vive feliz para sempre por aqui.

Depois de defender com sucesso sua permanência no Brasil, Barroso publicou o livro “O Novo Direito Constitucional Brasileiro”. Num dos capítulos, “O caso Cesare Battisti – contra a perseguição política e a retaliação histórica”, faz um relato dos fatos. Então se refere ao ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que havia opinado sobre o drama de Battisti. Em certo trecho, escreve que Suplicy é  “um homem de bem e espírito elevado, que vive em uma dimensão ligeiramente diferente das demais pessoas”.

Ligeiramente? Bondoso Barroso. Ou manhoso Barroso? Talvez, jocoso Barroso.

De todo modo, parece uma boa avaliação do nefelibático Suplicy, que agora provavelmente se candidatará a vereador em São Paulo. Mas na frase referente a Suplicy — “que vive em uma dimensão ligeiramente diferente das demais pessoas” — Barroso se distraiu porque omitiu a necessária contração “da” (de+a). Se tivesse sido mais atento, teria escrito, esquecendo o desnecessário artigo “uma”:

“… que vive em dimensão ligeiramente diferente DA DAS demais pessoas”.

O que Barroso quis comparar foi a dimensão em que vive Suplicy com a dimensão em que vivem outros seres mais ou menos humanos, e não DIMENSÃO com PESSOAS – grandezas obviamente diferentes.

Ninguém duvida de que a dimensão em que vive Suplicy é diferente da dimensão em que vivem as outras pessoas, como nós, seres comuns, que vivemos trabalhando e sofrendo na lamentável dimensão da esfera terrestre sempre tão bem governada, e sem gordas aposentadorias e outras vantagens.

Claro que o “DA DAS” soa mal com a trombada dos “DES”, mas o resultado é indiscutível do ponto de vista da variante culta da língua.

Dissonâncias à parte, convém lembrar que a falta distraída da preposição “de” com o artigo (a ou o) é muito frequente em comparações como essas, em que tal contração serve para indicar a elipse de alguma palavra; assim, tal palavra não precisa ser repetida. No caso, “dimensão”. Essa, portanto, é a opção formalmente indiscutível.

Casos semelhantes colhidos em jornais e revistas, em que se omite por desconhecimento certa palavra representada por uma contração (a+a/o ou de+a/o) ou artigo em comparações:

 

  • Sobre empreiteiras dadivosas:

“Seus recursos eram superiores ao concorrente.”

Correção:

Seus recursos eram superiores AOS DO concorrente. (aos recursos do) (E não “superiores ao concorrente”.)

 “A taxa de crescimento do PIB ficará abaixo dos governos passados.”

Correção:

A taxa de crescimento do PIB ficará abaixo DA DOS magníficos governos passados.

(…abaixo da taxa do PIB) (E não “abaixo dos admiráveis governos”.)

 “O número de assassinatos deste ano deve ser maior do que o ano passado.”

Correção:

   O número de assassinatos deste ano deve ser maior do que O DO ano passado.

(…maior do que o número do ano passado.) (E não “maior do que o ano passado”.)

  • “Os preços lá são inferiores aos outros.”

Correção:

Os preços lá são inferiores AOS DOS outros.

(…inferiores aos preços dos outros) (E não “inferiores aos outros”.)

Quanto ao fato de o senador Suplicy flutuar em outra dimensão, impossível discordar da barrosa avaliação. Quem não gostaria de ficar pairando como ele numa boa alheio a quase tudo? Por isso ele talvez pudesse estrelar uma peça que se assemelharia em tema à ópera “O Holandês Voador” (que na verdade não voava), também de Wagner.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

 

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