A donzela de dois braços

A DONZELA DE DOIS BRAÇOS

Por Josué Machado

Os estragos que a pena de urubu malandro pode causar no texto de uma obra literária de elite,  quase pronta para  coroar o governo Temer

ESPECIAL PARA O CHUMBO GORDO

Na esplêndida costura que o Michel Temer fazia com o novo ministério, alguém citou o nome da filha do Sarney para a Educação.

Temer desistiu de admirável Roseana por causa de processo contra ela no Maranhão e da sombra ameaçadora da Lava Jato. Mas nem haveria problema, pois não estão lá o Romero Jucá? O Geddel? O Moreira, Francamente em secretaria especial? Mas faltou o Maluf.

Depois de pensar no pastor descendente direto de Adão e Eva para a Ciência e Tecnologia, Temer voltou atrás e escolheu o mui versátil cientista Kassab-nem-de-centro-nem-de-direita-nem-de-esquerda. Então que mal faria mais uma fera para enriquecer tal time?  Tudo bem, Roseana não entra, mas Sarney Filho entra.

Pois mal, esquecendo um pouco a confusão atual na política e o fato de a sagrada família Sarney ter levado o Maranhão aos píncaros do progresso, com 12,9% da população abaixo da linha de pobreza, o triplo da média nacional de 3,6%, pode-se lembrar o fato de o patriarca, já fora do Senado, ter anunciado  estar trabalhando em mais dois livros. Um deles é sobre certa família mítica cujos integrantes não conseguem morrer.

Alguns comentaristas graciosos já disseram que ele talvez esteja escrevendo a autobiografia porque comanda o Maranhão há séculos.

Sobre um de seus quatro livros publicados, o famoso pelo nome “Os Marimbondos de Fogo”, de 1978, o grupo cômico Casseta e Planeta, que começou depois de Sarney e acabou antes – como qualquer outra coisa neste mundo, aliás –, sugeriu mais dois títulos para completar uma trilogia: “Marimbondos de Porre” e “Marimbondos de Ressaca”.

Sarney ignorou a provocação e escreve de fato suas memórias e mais o romance “O Solar dos Tarquínios”, que talvez se inscreva no rol do realismo fantástico porque trata de família imorredoura, talvez à moda de Gabriel Garcia Márquez.

Este é um trecho:

        “Instintivamente segurou com seus dois braços aquela invasão de suas pernas. Levantou-se para buscar o tio Antônio Gonçalves da Silva, em cuja companhia vinha para o Brasil, para protegê-la.”

“Segurou com seus dois braços aquela invasão de suas pernas”? Eis aí uma oração de sentido obscuro. Simbolismo? Ela talvez possa ser traduzida assim, com perdão do acadêmico:

 Instintivamente deteve com os braços algo que lhe invadia as pernas

Mais importante do que traduzir o dr. Sarney, no entanto, é o fato de a dama ter segurado algo ou alguém “COM SEUS DOIS BRAÇOS.”

 Dá o que pensar.

      … No caso de Sarney é justificável, porque ele escreve com pena de urubu malandro, ave muito comum no Maranhão e em Brasília. E essas penas, embora superiores às de ganso usadas outrora, às vezes produzem distorções no texto…

Sendo um ser humano, como todos os seres humanos normais, saudáveis e  não acidentados, a donzela aflita não deve ter mais de dois braços e apenas dois. Por que então Sarney escreve, como alguns repórteres distraídos, que ela “segurou com seus dois braços” aquela safada coisa inconveniente que tentava ir aonde não devia? “Segurou com SEUS DOIS BRAÇOS”? (Menos mal que não escreveu em seguida “… que lhe invadia as DUAS PERNAS”).

Quando o Ronalducho Fenômeno ainda jogava, um repórter escreveu que ele havia machucado “SEUS DOIS JOELHOS”. Inofensiva e engraçada redundância. Alguns redatores distraídos, e não só do esporte, às vezes escrevem coisas como “o jogador contundiu SUAS DUAS pernas” ou !SEUS DOIS tornozelos” ou “SUAS DUAS orelhas” ou “SEUS DOIS olhos” ou “SEUS DOIS braços”.

Na Arábia Saudita, alguém acusado de roubar algo “teve SUAS DUAS MÃOS decepadas”, escreveu o repórter. (Ah, se  esse castigo vigorasse em áreas frequentadas por políticos na pátria amada …).

Os redatores às vezes até antepõem o artigo ao possessivo em excesso ainda maior: “feriu AS SUAS DUAS narinas” ou “AS SUAS DUAS nádegas”, numa espécie de trailer do que escreveria o ex-senador em sua história de assombrosa vida eterna maranhense. Teria o acadêmico sido influenciado por redatores distraídos.

No caso de Sarney é justificável, porque ele escreve com pena de urubu malandro, ave muito comum no Maranhão e em Brasília. E essas penas, embora superiores às de ganso usadas outrora, às vezes produzem distorções no texto.

Mas na notícia sobre o Ronalducho, escrita por certo em computador e não por Sarney, bastaria terem dito que ele “machucou OS JOELHOS”, já que não tinha e continua não tendo mais de duas dessas utilíssimas dobradiças. E que tal escrever apenas que os jogadores machucaram (eles gostam do verbo “contundir”) as pernas, as canelas, as orelhas, o coração, os pulmões ou os rins?

   (O fato é que os adversários é que machucam o que quer que seja dos oponentes, embora às vezes alguns se machuquem sem ajuda de ninguém.)

Diante disso, pode-se concluir que partes do corpo rejeitam com veemência a combinação com adjetivos possessivos. Rejeitam e dispensam também enumeração porque pouca gente ignora que temos originalmente duas panturrilhas, dois joelhos, dois pulmões um grande coração e assim por diante. Por isso, nada de “OS SEUS DOIS RINS”, “OS SEUS DOIS PULMÕES”, “OS SEUS DOIS JOELHOS”, “OS SEUS DOIS COTOVELOS”.

Ou “SEUS DOIS BRAÇOS” da donzela literária do Sarney.

É demais.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

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