O cantor chamado Cauby

O cantor chamado Cauby

Por RUY CASTRO

… Era o que se esperava dele e dos passarinhos: cantar — se possível, para sempre…

Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, página 2, edição de 18 de maio de 2016

RIO DE JANEIRO Certa vez, em criança, vi um passarinho morrer. Era um canário e suas penas estavam na muda. Deixou de comer, as penas caíam e não eram repostas. Mas não se percebeu que havia algo errado porque, por mais jururu que ele parecesse, nunca deixou de cantar. Um dia, cantou pela manhã. À tarde, pulou para o fundo da gaiola. Pareceu hesitar por um instante, caiu para um lado e morreu.

Cauby Peixoto, que morreu domingo (15) em São Paulo, aos 85 anos, lembrou-me este passarinho. Uma pneumonia levou-o a um hospital e, segundo os relatos, a morte lhe veio com suavidade — em paz, entre amigos, o coração apenas parando. Poucos dias antes, apresentara-se com Angela Maria no Municipal do Rio. Era o que se esperava dele e dos passarinhos: cantar — se possível, para sempre.

PASSARO NA FONTEEu me pergunto se Cauby de fato existiu. Ou se o que conhecemos foi um homem que, à sua maneira perfeita e única, interpretou um cantor chamado Cauby.

Praticamente nunca se ouviu de Cauby uma frase que não tivesse sido escrita pelos letristas, bons ou maus, que forneceram seu repertório — os versos que cantou em “Conceição”, “Molambo”, “Nono Mandamento” e centenas de canções em incontáveis ritmos, alcances, andamentos e línguas. Fora do palco, Cauby sempre driblou as perguntas que tentavam jogá-lo contra colegas, nunca emitiu uma única opinião política e atravessou a vida como se não tivesse sexo ou idade. Só cantou.

Talvez tivesse sido maior ainda se não insistisse em se impor como cantor a todas as canções que gravou, às vezes asfixiando-as com vibratos, floreios e maneirismos. Mas, para exigir isso dele, teríamos de fazer o mesmo com João Gilberto, Lucio Alves e Orlando Silva, outros excepcionais cantores que também impunham sua autoridade sobre as canções, vergando-as a seus estilos. Claro, só faz isto quem pode.

Eu me pergunto se Cauby de fato existiu. Ou se o que conhecemos foi um homem que, à sua maneira perfeita e única, interpretou um cantor chamado Cauby.

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ruy castroRuy Castro*É jornalista e escritor. Já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda

 

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