Só rindo. Ou chorando. Por Josué Machado

SÓ RINDO. OU CHORANDO.

Por Josué Machado

Certos textos públicos parecem ter sido gerados num curso de alfabetização tardia

Verdade que a leitura de alguns textos nos dão vontade de chorar, mas corrigir comentários de amigos ou conhecidos nas redes sociais  é de uma deselegância  irrecuperável, sabemos quase todos.

No entanto, não merecem essa piedosa licença os profissionais da escrita – jornalistas, publicitários, acadêmicos e operadores da justiça. Pois quem trabalha com texto tem de conhecer bem a própria ferramenta de trabalho – o idioma –, nem seria preciso lembrar.

É o caso da carta circular de uma entidade que se denomina Associação Brasileira dos Aposentados e Pensionistas, ASBP, e se propõe a rever índices de reajuste do FGTS dos interessados.

…O autor esquece, entre outras coisas, que vírgulas não podem pingar no texto sem motivo, como lágrimas vertidas de olhos sem amor. Elas devem cumprir função sintática, princípio que pelo jeito o autor das maltraçadas ignora…

Num pequeno e torto texto de vinte linhas, um tanto confuso e extremamente desarticulado, o escriba da ASBP consegue o prodígio de atropelar a língua umas trinta vezes. Mesmo que o autor seja algum transeunte distraído, supõe-se que seu trabalho tenha tenha sido revisado por um advogado da entidade – se é que há algum por lá para cuidar da questão jurídica a que se propõe. E os advogados trabalham com a língua (no bom sentido).

O autor esquece, entre outras coisas, que vírgulas não podem pingar no texto sem motivo, como lágrimas vertidas de olhos sem amor. Elas devem cumprir função sintática, princípio que pelo jeito o autor das maltraçadas ignora.

Como é que um triste texto tosco, revelador de desamparo essencial, pode convencer alguém a aceitar a ajuda que oferecem seus autores?

Quando mais não fosse, ser-lhes-ia possível prestar tal ajuda? — perguntaria Temer.

Em seguida, para quem tiver paciência, algumas joias reproduzidas literalmente do textículo. Algumas, porque não há espaço para todas.

Elas estão GRIFADAS E COMENTADAS:

1) “A ASBP, seguindo seu dever estatutário, vem por meio desta, informar que devido a decisão do STF, foi constatado a INCONSTITUCIONALIDADE da TR – Taxa Referencial para fins de atualização monetária.”

  1. a) vírgula imprópria depois de “desta”, separando o verbo de seu complemento;

  2. b) falta a vírgula depois de “informar que”, separado do verbo (foi) por frase intercalada;

  3. c) falta o acento no “a” da deselegante expressão “devido a”, que seria substituída com vantagem estilística por uma destas locuções causais: “por causa da”, “em consequência da”;

  4. d) esqueceram a concordância: “constatadA A inconstitucionalidade”.

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2) “Atenção! Se você sacou o FTGS ou o mesmo ainda encontra-se em depósito, você pode ter direito a correção de até 88% dos valores já sacados ou aos valores que ainda está depositado.”

  1. a) é impróprio usar “o mesmo” no lugar de pronomes pessoais ou oblíquos como ele/ela/o/a: “…se você sacou o FGTS, ou parte dele, pode ter…”.

  2. b) o pronome “se” deveria anteceder o verbo por efeito do advérbio “ainda”: “ainda se encontra”;

  3. c) concordância faz bem para a saúde: “valores que ainda estão depositados”.

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3) “Para fazer a análise do seu direito a referida revisão, compareça a sede da ASBP localizada na Rua Bento Freitas, 362 – 6º andar, Vila Buarque (Proximo ao Metro Republica) – SP, no prazo de 48 horas, ou seja, (2 dias úteis) após o recebimento desta, horário de atendimento, de segunda à sexta-feira, das 9 às 18 horas, exceto feriados.”

  1. a) falta óbvia do acento no “a” em: “… direito À referida…” e “…compareça À sede…”;

  2. b) faltam os acentos: “(Próximo ao Metrô República)”. melhor seria, depois de vírgula: “perto da estação do metrô República”;

  1. c) depois de “desta” deveria haver ponto final;

  2. d) acento descabido no “a” pois aí não há crase.

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Como se vê, não há o que fazer. Chorar, talvez.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

1 thought on “Só rindo. Ou chorando. Por Josué Machado

  1. É um associação apócrifa. Há no Reclame Aqui algumas queixas de pessoas que foram enganadas. E agora, com o mesmo texto, recebi carta do Núcleo de Apoio Regional. Repetem-se os mesmos erros. Quero dizer, as vírgulas continuam onde estavam.
    Enfim, espertos os há aos montes. Vários, mal alfabetizados.

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