O jogo da morte. Coluna Mário Marinho

O jogo da morte

Coluna Mário Marinho

Em plena disputa da Olimpíada, no dia 9 de agosto, completaram-se 74 anos do Jogo da Morte, o jogo onde ucranianos enfrentaram e bateram os poderosos alemães de Adolf Hitler, mesmo sob forte ameaça dos nazistas.

Passados 64 anos, a história se mescla com a lenda mas continua viva.

Kiev, a capital da Ucrânia, foi ocupada pelos nazistas no dia 19 de setembro de 1941. Como consequência imediata, 30 mil judeus foram mortos e a vida da tranquila cidade foi totalmente transformada.

O futebol, claro, foi também atingido com a interrupção dos jogos da Liga Nacional. Os jogadores dos dois times mais fortes, Dynamo e Lokomotiv, tiveram que conseguir emprego em outras áreas para sobreviver.

A padaria estatal nº 3 da cidade acolheu alguns jogadores No dia a dia, o administrador da padaria, o alemão Joseph Kordik os encorajou a formar um time de futebol amador.

O time foi formado, recebeu o nome de FC Start e começou a disputar e vencer jogos com facilidade, já que era formado por jogadores dos dois melhores times do País.

Assim, em junho de 1942, venceram o  Rukh, treinado por Georgi Shvetsov, ex-futebolista e um dos articuladores da Liga, por 7 a 2. Daí, decidiram programar uma série de jogos, usando uniformes encontrados pelos jogadores Trusevych e Putsin em um depósito abandonado.

O FC Start não encontrou dificuldades para derrotar os times formados por guarnições invasoras e bateu húngaros (6 a 2), romenos (11 a 0), operários de uma estrada de ferro (9 a 1), PGS, de alemães (6 a 0), MSG Wal, alemães (5 a 1 e 3 a 2) e Flakelf, alemães (5 a 1).

A história ou lenda começou exatamente após a goleada sobre o Flakelf, time formado por militares da artilharia alemã. Indignados com a derrota e a já famosa invencibilidade dos “padeiros” de Kiev, eles exigiram uma revanche para o dia 9 de agosto, três dias após o triunfo ucraniano por 5 a 1.

cartaz

O cartaz do jogo do dia 6 de agosto e a revanche no dia 9

O juiz escalado foi um oficial da Waffen-SS, da Schutzssaffel, a temida tropa de elite de Hitler, que foi  ao vestiário do FC Start alertar para que eles jogassem conforme as regras e fizessem a saudação nazista antes do apito inicial.

Após a visita do árbitro, os jogadores engoliram a seco as palavras do alemão e decidiram entrar em campo para vencer. Makar Goncharenko, habilidoso ponta do time, disse em depoimento décadas depois que “esporte é esporte. Nós não queríamos perder”.

Com os times perfilados, os alemães do Flakelf fizeram a tradicional saudação nazista, mas os ucranianos permaneceram eretos, sem reação, no primeiro golpe aos soberbos nazistas. Quando a bola rolou, o juiz fez questão de tapar os olhos para o jogo duro dos alemães do Flakelf e deixou a partida seguir mesmo após o goleiro Trusevich ser chutado na cabeça e permitir que o Flakelf abrisse o placar. Mas o FC Start se enervou com o jogo viril dos rivais e partiu pra cima, empatando o jogo. Antes de terminar o primeiro tempo, os ucranianos viraram para 3 a 1.

Segundo consta, oficiais da SS foram ao vestiário alertar os jogadores do FC Start sobre aquela vitória. Eles teriam dito que era preciso entregar o jogo para que problemas não acontecessem depois.

Na volta ao segundo tempo, os alemães marcaram dois gols, mas o Start fez mais dois e chegou aos 5 a 3.

Terminada a partida, os jogadores foram para os vestiários bastante nervosos pela tensão e frieza que tomou conta dos militares. Os “padeiros” tomaram seus banhos pensando apenas em sair com vida do Zenit Stadium e voltar ao cotidiano na padaria nº3. Eles conseguiram sair, pegaram suas coisas e foram embora.

No dia 16 de agosto, o Start entrou em campo mais uma vez para golear o Rukh por 8 a 0 e completar 10 jogos com 100% de aproveitamento. No entanto, aquela partida foi a última do time criado para manter os grandes craques da Ucrânia na ativa. Dois dias depois, seis jogadores foram presos pela Gestapo por supostamente estarem ajudando a NKVD, precursora da KGB, a polícia secreta soviética. Dois dias depois, mais dois foram presos.

Semanas depois, Mykola Korotkikh foi morto sob tortura por supostamente compactuar com a NKVD. Em 1943, mais três ex-jogadores do Start foram mortos: Trusevich, Klimenko e Kuzmenko, executados juntos com outros 24 prisioneiros no campo de concentração nos limites de Kiev.

As alegações foram muitas, tais como sabotagem em equipamentos de guerra, desobediência, punição pela fuga de outros prisioneiros, entre outras. Outros presentes ao fatídico jogo suportaram aquele período tenso e viveram para contar a quem pudessem a história do jogo contra o Flakelf. Os maiores propagadores do duelo na cultura popular foram Tyutchev, Svyridovsky e Goncharenko, que contaram diferentes versões que foram dissecadas pelos historiadores com o passar do tempo e criaram verdadeiros desafios que até hoje não foram esclarecidos ou solucionados com precisão, muito pela falta de provas concretas e marcação cerrada dos nazistas aos soviéticos na época.

Em 1974, um tribunal de Hamburgo (ALE) abriu um processo para analisar os fatos do “Jogo da Morte”, mas as autoridades soviéticas não colaboraram com os alemães e o caso foi fechado em março de 1976. Em 2002, foram as autoridades ucranianas que decidiram reabrir o processo, mas ninguém conseguiu ligar as mortes dos quatro ex-jogadores do Start à vitória do time sobre o Flakelf.

O fato é que o jogo existiu. Os bravos ucranianos infligiram vergonhosa derrota aos nazistas.

Se e quantos pagaram com a vida o tempo ainda não se encarregou de esclarecer.

(FOTO ABERTURA: Os time perfilados no Zenith Stadion em Kiev. )

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FOTO SOFIA MARINHO

Mario Marinho É jornalista. Especializado em jornalismo esportivo foi durante muitos anos Editor de Esportes do Jornal da Tarde. Entre outros locais, Marinho trabalhou também no Estadão, em revistas da Editora Abril, nas rádios e TVs Gazeta e Record, na TV Bandeirantes, na TV Cultura, nas rádios 9 de Julho, Atual e Capital. Foi duas vezes presidente da Aceesp (Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo). Também é escritor. Tem publicados Velórios Inusitados e O Padre e a Partilha, além de participação em livros do setor esportivo

A COLUNA MÁRIO MARINHO É PUBLICADA TODAS AS SEGUNDAS E QUINTAS AQUI NO CHUMBO GORDO.

(E SEMPRE QUE TIVER NOVIDADE OU COISA BOA DE COMENTAR. )

3 thoughts on “O jogo da morte. Coluna Mário Marinho

  1. Mario, bom dia. Do dia 9 de agosto de 2016 – 64 anos, teríamos o ano de 1952, a guerra terminada e de nazista, nem a suástica existia mais. Se o engano foi de 10 anos, (teríamos 74 anos) então, “O JOGO DA MORTE” foi em 1942, a Alemanha tinha invadido a Russia e até hoje meus ouvidos guardam a abertura do jornal da rádio Kosmos, (antigo nome da Jovem-Pan), com Wilson Fitipaldi, pai (recentemente falecido), berrando “ESTALINGRADO CONTINUA FIRME”.
    Abs. Laruccia

    1. Caro Modesto,

      Nada como ter um leitor atento e pronto para corrigir nossos erros. Realmente, o jogo aconteceu em 1942, há 74 anos portanto.
      Grande abraço,
      Mário Marinho

  2. EXCEPCIONAL, MARINHO, o seu ultimo artigo no site do Chumbo Gordo.
    já quase decorei suas informações. obrigada por ter – e nos enviar – essa memória.
    não soube disso na época, apesar de morar em Lisboa intensamente metida – como jornalista – na então quase morta revolução dos cravos.
    OBRIGADA!!!

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