Nós e nossos dentes. Por Josué Machado

NÓS E NOSSOS DENTES

Por Josué Machado

É preciso tomar cuidado com os dentes e também com o estreito pecado da banalidade.

Já se sabe que as pessoas com convicções políticas têm certeza de que estão certas e que as outras, do outro lado, estão erradas.

Então, para esquecer as tristezas destes tempos bicudos, em que amigos e parentes se desentendem por estar em lados diferentes no amaldiçoado espectro político,– cada um com suas certezas definitivas –, o leve cronista semanal de amenidades fala de “pequenos incômodos que fazem da vida um inferno”.

Cita entre eles o caso do fio dental que arrebenta e anuncia, revelador:

Tenho 30 dentes na boca, o que resulta em 28 vãos, dos quais 27 não me causam problema algum.”

O leitor da crônica há de ficar curioso: serão 15 na arcada superior e outro tanto na inferior? Ou 16 e 14? Ou o contrário? (Seriam 32 se não lhos [como diria Temer] tivessem extraído dois por qualquer razão.)

Começa então o cronista a descrever detalhadamente o constrangedor ato de usar o fio dental, coisa que os bons costumes recomendam seja feita entre quatro ou mais paredes, antes de escovar todos os dentes.

Tudo muito interessante. Mas o melhor de tudo, a revelação insuperável, é a de que tem “30 dentes na boca”. Sim, sim, ele tem 30 dentes na boca, nem mais nem menos.

…De qualquer modo, jamais saberemos por que se produzem tantas obviedades distraídas.

Poder-se-ia (como diria Miguel) perguntar: em que outro orifício corporal conhecido poderia ele ter seu equipamento mastigatório composto dos 30 duríssimos dentes?

Truísmos como esse, por sorte inofensivos e apenas risíveis, são muito comuns nos textos de pessoas que procuram suavizar a vida dura que enfrentamos; com tais graçolas involuntárias, contrabalançam o noticiário duro revelador da atuação sempre idealista dos nossos políticos em favor do povo – nós e nossos dentes, todos na boca.

De qualquer modo, jamais saberemos por que se produzem tantas obviedades distraídas.

Serão ecos das redes sociais, nas quais algumas criaturas contam até que levaram o Lulu pra passear e que assoaram o nariz seis vezes só de manhã?

Talvez nem tanto, mas há casos no jornalismo em que a banalidade chega a ser comovente. Um repórter, por exemplo, nos informa que o motoqueiro infeliz teve fraturadas “as suas duas pernas” no acidente. Sim, “suas” porque são dele e de ninguém mais. E “duas”, todas elas, porque só tem duas.

Ele poderia ter dito apenas que “o motoqueiro teve as pernas fraturadas”, porque não há quem ignore que motoqueiros em ação têm somente duas e não mais que duas pernas, porque não são aranhas, brindadas pelo bom Deus com seis pernas, todas fininhas.

Não há o que fazer.

_____________________

JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter