PEC do Teto: “moralizemos tudo, ou locupletemo-nos todos”. Por Aylê-Salassié F. Quintão*

PEC do Teto: “moralizemos tudo, ou locupletemo-nos todos”

Aylê-Salassié F. Quintão*

Inconveniente ou assustadora, a emenda dará ao Estado instrumentos para limitar os penduricalhos orçamentários que não são poucos. Deve  suprimir rubricas e valores apropriados indiretamente por dezenas de parlamentares, correligionários e amigos.

A emenda constitucional chamada de “PEC do Teto” mantém uma proximidade grande com a Operação Lava Jato. Não se propõe a prender ninguém, mas a passar o rodo em centenas de programas, projetos, acordos, convênios, modelos corporativos, acadêmicos, empresariais e, sobretudo, familiares mantidos com dinheiro público dentro do Orçamento da União. Seus efeitos se estenderão para os orçamentos estaduais e municipais. Vai desarmar muita gente boa que se apoia em programas  comunitários, em artificiosas audiências públicas e até nas ruas.

Inconveniente ou assustadora, a emenda dará ao Estado instrumentos para limitar os penduricalhos orçamentários que não são poucos. Deve  suprimir rubricas e valores apropriados indiretamente por dezenas de parlamentares, correligionários e amigos. Chegará certamente às  paternais desonerações empresariais que só, em 2017, corresponderiam a mais de R$ 200 bilhões expropriados dos cofres públicos. Tende a induzir a internalização de R$53 bilhões de recursos desviados irregularmente do Estado, e imobilizados no estrangeiro ou gerando empregos  em outros países. O BNDES distribuiu R$ 50,5 bilhões do FAT (poupança compulsória do trabalhador brasileiro) para  140 projetos em 26 países.  A simples repatriação desse dinheiro abriria milhares de oportunidades de trabalho por aqui.

BB, CEF, BNDES  e empresas como a Eletrobras, a Petrobras, os fundos de pensão, que vinham confundindo interesses dos acionistas e associados com os dos políticos, terão de retornar aos patamares estatutários.

 A hipótese revolucionária  de estender, cedo ou tarde, as pedaladas também  às instituições financeiras privadas estará inviabilizada. Em compensação a festa dos juros altos em cima de uma dívida pública inchada também deve perder sua fonte de inspiração . O tal orçamento criativo, aquele com déficit leviano de R$ 70 bilhões para 2016, e que, por meio de uma política cambial e da venda dos títulos públicos, fazia o dinheiro vazar para todos os lados, terá as torneiras fechadas. E, assim, já se sabia de antemão que, senão a longo prazo,  não haveria transposição do São Francisco, o Minha Casa Minha Vida não seria concluído, não haveria dinheiro para o FIES, para as 100 mil bolsas no exterior e o famoso Pronatec iria parar no meio.

 As desonerações tiveram outro sentido. Vieram no momento em que se percebeu que a “vaca ia pro brejo”. Transferiu-se então, paradoxalmente, para o ávido mundo empresarial a responsabilidade de salvar a Pátria, como se  lhes estivesse fazendo um grande favor.

Esse cenário encorajou a Lewandowski para, no auge da crise agônica, ir à Dilma pedir aumento de salário para o Judiciário, casta, de formato oligárquico (familiar), cujas remunerações e vantagens competem e até superam as mesmas categorias em países desenvolvidos. Nessa área, a criatividade chegou a tal ponto que se inventou um modelo de reajustes salariais sucessivos e automáticos em orçamentos futuros, artifício que nunca deixaria os cofres públicos fecharem-se para um balanço rigoroso. Não foi de se admirar.

O Judiciário, ao qual caberia preservar as regras, tem sido o primeiro a desrespeitar os acordos salariais isonômicos entre os Três Poderes, alegando, unilateralmente, preservar sua autonomia, cujo peso foi também sempre maior que a real capacidade do Tesouro para ampará-lo.

Por incrível que pareça, o Ministério Público que deveria insurgir sobre o volume de recursos reservados aos pagamentos de juros da dívida interna e externa, reclamou que faltaria recursos para suas investigações.

Ora, os salários dos procuradores seguem mais ou menos os do Judiciário. As prerrogativas também. Cada procurador agrega mensalmente entre os seus privilégios R$ 5 mil para pagar aluguel e moradia, mesmo que exerça suas atividades na cidade onde reside. As contas dos partidos que estão hoje na Lava Jato já foram aprovadas pelo TSE .

O próprio TCU, que denunciou  as fraudes, procura esconder os salários dos seus funcionários. Cargos de ministro existem centenas deles por aqui! Além  de vitalícios, são doados para os amigos, como se fossem reles presentes de Natal. As “quarentenas”  para os que deixam os cargos públicos são remuneradas por até seis meses. No fundo são gorduras do orçamento, cujo retorno e produtividade proporcionais podem ser questionados: 78 milhões de processos paralisados. Ora, a moralidade!…

O modelo patrimonialista , denunciado por Faoro (1958), associado ao sistema financeiro, funciona como uma caixa preta de injustiças e covardias pontuais contra a população. Os abusos são grandes, os roubos maiores, e expressivo é ainda o cinismo das elites , em particular, daquela pequena burguesia cujos projetos e atividades só funcionam como o aporte dos cofres públicos. Seria de se desejar mesmo que a PEC 241 fosse  devastadora do ponto de vista fiscal,  e com ela  surgisse um novo modelo de planejamento, programação e auditoria dos investimentos e dos gastos públicos.

Preservem-se os direitos sociais,  mas que nunca tenhamos de enfrentar o anátema excomungatório de José Maria Alkmin: “Moralizemos tudo, ou locupletemo-nos todos!”.

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Aylê-Salassié F. Quintão* – Jornalista, professor, doutor em História Cultural

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