Quando o Personagem Revela o Homem. Por Sheila Maria Reis Ribeiro

Quando o Personagem Revela o Homem

                                   Sheila Maria Reis Ribeiro

…Santo dos Anjos, homem simples e sem grande instrução formal, possuía profunda sabedoria, herdada de seus pais, e demonstrou por suas atitudes cotidianas que a dignidade está em ser verdadeiro na ação e na intenção. Amou para além dos preconceitos, foi íntegro, justo e se fez líder pelo respeito e confiança que inspirou na comunidade…

Em setembro, vivenciamos a tragédia da perda de um jovem artista, Domingos Montagner, de cuja existência tomei conhecimento ao assistir a Velho Chico, novela de Benedito Ruy Barbosa e Bruno Luperi, que foi ao ar a partir de 14 de março. Não acompanhei desde o início, mas fui reconstituindo o enredo e o histórico dos personagens ao longo do tempo. A meu juízo, a novela entrará para a história da teledramaturgia brasileira como obra comparável ao icônico O Bem Amado.

Em princípio, senti-me atraída pela trama e pela identificação com alguns personagens que me trouxeram à memória sentimentos e emoções de um passado familiar: nordeste, paixão pela terra, tensões e traições, conspirações políticas e atentados grotescos contra a vida, num universo em que o exercício do poder ainda se alimenta da sujeição ideológica à figura dos coronéis e da expropriação sustentada pelo poder público.

Em meio a tudo isso, o apelo à resistência, à luta pela justiça, a oposição do verbo à força bruta, a superação do status quo pela imposição de valores como verdade, justiça e dignidade na vida privada e na vida pública, assim como o respeito ao sagrado (mistério), que se fez representar pela invocação da sabedoria dos povos indígenas somada ao conhecimento científico da natureza.

Domingos não foi a única perda sofrida no elenco de Velho Chico. Em abril, faleceu Umberto Magnani, que interpretava o Padre Romão, vitimado por um acidente vascular encefálico.  Duas vidas, duas carreiras; ambas, perdas irreparáveis.  A morte repentina do ator que encarnava o personagem Santo, entretanto, foi além do sentimento de perda humana. Santo simbolizava a dignidade, a resistência e a confiança num futuro melhor. Chamaram a atenção, também, os depoimentos de familiares, amigos, colegas de trabalho e dos que com ele contracenaram. Todos foram unânimes em afirmar que o Santo que entrou pelas telas em nossos lares era uma versão verdadeira do Domingos levado pelas águas do São Francisco: homem íntegro, lutador, amigo, amoroso, trabalhador, generoso, atencioso, respeitador, agregador, bom pai e marido, alguém muito simples que acreditava e cultivava a alegria.

Um luto tomou conta de nós, telespectadores, sentimento esse não comparável ao luto familiar e nem ao daqueles que privaram da amizade de Domingos, mas ao de um público que identificou no personagem a centelha da esperança.

Erving Goffman, em “A Representação do Eu na Vida Cotidiana”, afirmou que todos representamos. O relacionamento social é montado como uma cena teatral, como se todos fôssemos atores num palco à procura de convencer a plateia. Uma representação tenderia a ressaltar os valores comuns de uma sociedade como se fosse uma celebração dos valores aceitos. Se essa tese for verdadeira, qual a diferença entre Santo e Lula? Como explicar a ascensão do primeiro e o declínio do segundo? Num cenário em que se considera padrão representar e em que se assiste à naturalização da mentira na política, como interpretar o movimento de ascensão e de queda desses personagens em face dos valores celebrados pela sociedade? Como separar a realidade da ficção?

Especialistas afirmam que a narrativa ficcional não se subordina à realidade. Na visão de Moacyr Scliar, o personagem e as situações é que diferenciam uma obra de ficção de um ensaio ou de uma reportagem. Mas, apesar de todas as diferenças, Beth Brait, na obra A Personagem, de 1987, considera que os personagens de uma narrativa literária podem ganhar vida e escapar ao domínio do autor, permanecendo no mundo das palavras à mercê dos delírios dos receptores. E é nesse contexto delirante que resgato Santo dos Anjos do reino da ficção e o comparo a Lula, cuja autoimagem esculpida à semelhança de Jesus Cristo permite-me não tratá-lo como um personagem menor.

Santo dos Anjos, homem simples e sem grande instrução formal, possuía profunda sabedoria, herdada de seus pais, e demonstrou por suas atitudes cotidianas que a dignidade está em ser verdadeiro na ação e na intenção. Amou para além dos preconceitos, foi íntegro, justo e se fez líder pelo respeito e confiança que inspirou na comunidade. No trágico e real episódio de desaparecimento do ator, depoimentos de familiares a amigos mostraram coincidência de traços entre o ator e o personagem, levando-me a concluir que Santo não era estranho a Domingos. Nesse caso, o personagem teria revelado o homem.

…Santo dos Anjos encarnou o homem herói, e não o herói mitológico que parece alimentar a concepção de seres superiores comum na velha política, fonte na qual bebeu e prosperou Lula.

Lula, ator relevante no cenário político nacional dos últimos 40 anos, ao contrário de Santo, é o homem que tentou se assemelhar e se esconder no personagem: na imagem do sertanejo, do homem simples e trabalhador que ascendeu a político de esquerda alavancado pelo sindicalismo de resultados e depois, não se sabe de que modo, cooptado pelos mais nobres ideias de combate à exploração e às injustiças sociais. Mas, na vida ou na ficção, o que sabemos hoje de Lula, saído dos bastidores da política, é que, lamentavelmente, sua biografia traiu o personagem.

Santo dos Anjos encarnou o homem herói, e não o herói mitológico que parece alimentar a concepção de seres superiores comum na velha política, fonte na qual bebeu e prosperou Lula. Essa pretensa superioridade, inclusive ética, teve um destino trágico para seu personagem ao favorecer o descrédito de grande parte da população na bandeira das esquerdas e ao sedimentar o caminho para a justificação de elites no poder.

Se a vida é representação, então é preciso ir além do mito, seja o do coronel seja o do retirante, para encontrar o homem. O poder genuíno não está no cargo nem nas instituições, mas na verdade do ator, na confiança que transmite como homem ou mulher por meio de suas ações e virtudes. Só a coincidência entre ator e personagem pode restabelecer a confiança na política.

A sabedoria indígena sobre a vida e a morte me conforta. Domingos não morreu. O simbolismo de Santos dos Anjos sobreviverá na memória da região, podendo renovar a esperança e a luta pelo respeito à natureza e pelo curso das águas do São Francisco.

Obrigada, Domingos, por sua curta, mas valorosa existência!

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Sheila Maria Reis Ribeiro
Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (1997). Bacharel em Filosofia e Licenciada em Serviço Social pela Universidade de Brasília.

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