Sexo e outras obsessões

Robert Solow, Prêmio Nobel de Economia, disse certa vez, referindo-se a Milton Friedman: “Tudo para Milton o lembra da oferta de moeda. Já para mim tudo lembra sexo, mas, pelo menos, eu tento mantê-lo fora dos meus artigos”. Também tenho minhas obsessões e, entre as publicáveis, a questão fiscal no Brasil ocupa lugar de honra. Digo isto a propósito de dados recentemente publicados pelo Banco Mundial acerca da comparação entre diferentes países. A imprensa local deu ênfase à posição do Brasil como a décima maior economia do mundo, mas não prestou muita atenção a outro conjunto de dados, bem menos lisonjeiro, que destaca o elevado nível de gasto público no país.

Tais dados se originam do Programa para Comparação Internacional (ICP) do Banco Mundial. O propósito do ICP é simples: gerar um conjunto de estatísticas que possibilitem a comparação entre vários países numa base comum, tarefa bem mais difícil que seu enunciado sugere. Obviamente não faz muito sentido comparar dados expressos em moedas diferentes. Dado que o PIB brasileiro é medido em reais e o PIB indiano em rúpias teríamos que convertê-los numa medida comum (por exemplo, euros) utilizando-se para tanto das taxas de câmbio entre o real e o euro e a rúpia e o euro. No entanto, taxas de câmbio de mercado são extremamente voláteis e com freqüência podem se desviar de seus valores de equilíbrio, prejudicando a comparação.

É possível, porém, definir taxas de câmbio “ideais” determinadas pelo que se convencionou chamar de Paridade de Poder de Compra (PPC). Em termos intuitivos a taxa de PPC é aquela que equipara os custos de uma mesma cesta de bens no Brasil e na Índia medidos na mesma moeda. Um exemplo simples deste conceito é o Índice Big Mac, calculado pela revista inglesa The Economist, que estima as taxas de câmbio em vários países que fariam o sanduíche valer o mesmo que custa nos EUA. Ainda que tal procedimento não esteja livre de problemas, as maiores dificuldades da comparação internacional conseguem ser bastante atenuadas.

Foi com base nesta metodologia que se construiu o ranking mencionado acima, mas ela também permite a montagem de vários outros rankings, inclusive relativos aos gastos do governo na provisão de serviços públicos (defesa, justiça, segurança, etc.). Não é surpresa, à luz dos números que venho apresentando nesta coluna há pouco mais de um ano, que o Brasil ocupe posição de destaque neste quesito. De fato, embora o PIB brasileiro corresponda a 2,9% do PIB global, o gasto do governo na provisão de serviços públicos equivale a 5% do total mundial; somos o décimo maior PIB, mas o quarto maior gasto.

Quando consideramos apenas os países com PIB acima de US$ 100 bilhões em 2005, o Brasil é o segundo colocado em termos de gastos com relação ao PIB, perdendo apenas para a China, cujo dispêndio militar é muito superior ao nosso. Na América do Sul, excetuado o Brasil, o gasto médio é 11% do PIB; no Brasil 19% do PIB. Tudo isto, diga-se, com a qualidade consagrada dos serviços prestados à população.

São números assim que deveriam sepultar de vez teses esdrúxulas sobre o “raquitismo” estatal brasileiro. A má qualidade destes serviços não resulta de pouco gasto, mas da baixa produtividade. Ignorar estes problemas pode ser cômodo, mas – mesmo mantendo sexo fora do artigo – é, acima de tudo, escandaloso. Feliz 2008 a todos.

(Publicado 26/Dez/2007)

12 thoughts on “Sexo e outras obsessões

  1. Obrigado Fernando. Quanto à dificuldade de entender os motivos pelos quais muitos não concordam com as evidências, não se preocupe. Ela é natural para qualquer um que parta do pressuposto (como eu parto e, acredito, você também) que o debate será guiado por regras de racionalidade.

    Quando, porém, religião econômica e interesse político entram na história, aí pode esquecer. Não vão concordar, nem que os números desçam do céu pintados de ouro.

    Ontem na Folha saiu uma matéria mostrando, mais uma vez, que o Brasil gasta demais com aposentadorias e pensões, em particular para sua estrutura demográfica. Nem assim os suspeitos de sempre deixaram de repetir a historinha sobre contabilizar as contribuições como receita do INSS, que o sistema não é deficitário, que não se pode fazer comparação internacional, blá, blá, blá…

    Mesmo assim, temos que martelar com fatos todos os dias. É o único jeito de ganhar o debate.

    Abs

    Alex

  2. Caro Alex, sou professor de financas publicas da UFJF e entendo perfeitamente o que voce esta dizendo… existe uma religiao economica disposta a achar (sem nenhuma contrapartida na realidade) que os problemas do país são resultados de um Estado insuficiente… É bom ouvir a opiniao de alguem que mostra que o problema é Estado demais porque os gastos são exagerados e de péssima qualidade!!!

  3. Alexandre: parabéns pelo ótimo post (li a coluna da FSP de hoje) e, por favor, continue escrevendo. O Brasil precisa de mais economia (baseada em fatos e análises) e menos crenças e “voodoos” (como dizia um professor meu na fgv).
    Abraços, Daniel

  4. Marcus:

    Acho correto considerar a contribuição do INSS como receita previdenciária. Não acho correto contabilizar qualquer tributo que, por conveniência, foi batizado de contribuição como receita previdenciária.

    Em qualquer caso, pode-se contabilizar as receitas como se quer; isto não muda o fato do gasto previdenciário ser exageradamente alto para um país com a estrutura demográfica do Brasil.

    Abs

    Alex

  5. O pior é pensarmos nas despesas realizadas por nosso Estado majestático, esse mix entre majestuoso e estático…

    Qual seria a saída?

    Lembro quando FHC falou do exagero de certas pensões…

    Sabemos que há pessoas que se aposentam em cargos públicos com salários abusivos, e em idades escandalosamente baixas… mas a reação foi a mais cartorial possível, com os jornalistas dando manchetes do tipo: FHC chama aposentados de vagabundos…

  6. O Estado brasileiro honra suas origens ibéricas bem depois dos países ibéricos terem, por bons motivos, abandonado o modelo.

    Curioso ler como a recompensa de qualquer navegador português não vinha dos lucros da sua missão, mas da renda que lhe era dada pelo estado.

    A diferença é que continuamos a fazer isto.

  7. Bilu, existe alguma explicação para o fato de que se plante laranjas no deserto da Palestina, mas não no Nordeste?

    Até quando o Nordeste vai ser essa fonte de exportação de mão-de-obra que vem se acumular nas favelas do Rio e SP, enquanto lá se encontram riquezas incalculáveis, inclusive graças a desvios constantes de recursos públicos?

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