Santas reminiscências santas. Blog do Mário Marinho

SANTAS REMINISCÊNCIAS SANTAS

BLOG DO MÁRIO MARINHO

Vou confessar uma coisa: não fosse a obrigação – doce obrigação – de escrever o meu blog às segundas e quintas-feiras, eu nem teria percebido que hoje é quinta-feira. Uma surpresa.

A segunda surpresa aconteceu com a notícia que ouvi de passagem no noticiário da hora de almoço na televisão: o Papa celebrou solitária missa da Quinta-feira Santa.

Quinta-feira Santa!

Deparei-me com a abrupta realidade! Amanhã, então, será Sexta-feira Santa,  a Sexta-feira da Paixão.

Não sei se esta quarentena está conseguindo achatar a curva da pandemia. Mas, com certeza, achatou nossos dias.

Nos dois sentidos.

Está achatando os nossos dias, até torná-los insuportavelmente horizontais: todos do mesmo tamanho, com a mesma linha reta da chatice.

Achatou os dias também no sentido de torná-los chatos, quase insuportáveis.

É duro ficar bolando o que não fazer o dia inteiro ou então criando e adiando imaginárias obrigações.

Mas a Quinta-feira Santa me leva a uma longa viagem de algumas décadas passadas, quando eu tinha meus 10 anos de idade.

Foi no começo daquele ano que o padre Heli visitou o grupo onde eu estudava, o Thomaz Brandão, para conhecer a meia dúzia de meninos que as professoras haviam selecionados e que se candidatavam a ser coroinhas.

Eu era um deles. Naquela época, ainda sonhava em ser padre e achava que ser coroinha seria o primeiro passo.

As professoras encontraram méritos naquelas crianças selecionadas do terceiro ano primário.

Nós já sabíamos ler e, no julgamento delas, estávamos prontos para aprender latim.

Sim, latim. Por que a missa naquela época era rezada em latim.

Teríamos que aprender todas as orações em latim.

E não era simplesmente decorar: o padre Heli fazia questão a gente realmente compreendesse tudo o que fosse dito.

Até hoje, de vez em quando, ainda ouço a voz tranquilizadora e forte dele a dizer bem alto para toda a igreja ouvir:

Dominus Vobiscum”.

E eu respondia e respondo com voz segura:

Et cum espiritu tuo

Traduzindo:

“O Senhor esteja convosco”

“E contigo também” (hoje a frase é traduzida assim: “Ele está no meio de nós”)

O padre Heli de Oliveira Mendes foi um Santo Padre e um grande cidadão.

Quando assumiu a igreja do Senhor do Bom Jesus, aquela localidade chamava-se Vila Santo André e tinha má reputação: era um lugar violento.

Graças aos esforços do padre Heli, houve um desmembramento e a localidade passou a se chamar Bairro Senhor Bom Jesus. A Vila também ganhou promoção e passou a se chamar Bairro Santo André.

A paróquia Bom Jesus era imensa, pois abrangia parte do bairro Santo André, da Vila Nova Esperança, Aparecida e o Parque Riachuelo, onde eu morava e que, com o passar do tempo, a prefeitura de Belo Horizonte irresponsavelmente tirou do mapa da cidade.

Padre Heli dava conta de toda a paróquia.

Primeiro, num carro velho, tipo um Ford 1929 que mais parava do que andava e que um dia parou de vez. Nunca mais rodou.

Passaram-se anos com o incansável padre andando a pé até que um dia conseguiu comprar um Jeep.

Aquela foi a minha primeira Semana Santa como coroinha.

Que começou no final da tarde de quinta-feira, com a cerimônia do Lava-pés. Na semana real de Cristo, essa cerimônia antecedeu a Santa e Última Ceia.

Eu era um dos 11 apóstolos que tive o pé (direito) lavado e beijado pelo padre Heli.

Na Sexta Santa, as poucas casas que tinham rádio ouviam música clássica o dia inteiro, em respeito à Paixão de Cristo.

Logo pela manhã, após o café, sai com meu pai e mais alguns vizinhos na carroceria de um caminhão para buscar bambus que seriam transformados em arcos para enfeitar as ruas onde a Procissão do Senhor passaria.

As mulheres ficaram em casa fazendo bandeirolas que enfeitariam os arcos.

Às 14 horas, depois de um almoço sem carne, claro, fui para a Igreja.

Minha missão naquele diz seria vender velas ao longo do caminho da procissão.

Havia concorrência com outros garotos que não eram da Igreja e vendiam velas para os comerciantes.

Mas, como eu trajava batina, minha vela tinha o caráter oficial e eu vendia mais. Muito mais.

Por volta das 17 horas, voltei à Igreja para ajudar em outra nobre missão: preparar, ao lado do Padre Heli, a saída do corpo de Cristo para a longa, penosa e santa procissão.

Era com orgulho que eu percorria as ruas próximas da minha casa: a avenida Cândido Lúcio, depois a rua Madureira, depois a Bernardo Cisneiros (onde morávamos), seguindo pela São Clemente, subindo a rua Madalena e daí à rua Teresina até chegar à praça Senhor Bom Jesus, onde ficava a igreja.

Sentia que era apontado por amigos, companheiros de escola e da rua e também por adultos.

– Olha ali!, ouvi alguém apontando.

– Quem?

– O Mário Lúcio.

– O Mário Lúcio, filho do sô Paulo.

Estufava o peito de orgulho.

No sábado, havia a queima do Judas, aquele que traiu Jesus. Era chamado de Sábado da Aleluia e, erradamente, comemorava-se a ressureição de Cristo.

Levou algum tempo até que a queima do Judas e a comemoração passassem para o dia certo, o domingo.

Foram mais ou menos uns quatro anos como coroinha, ajudando missas não só na Igreja do Bom Jesus, mas também nas capelas adjacentes, sempre ao lado do Padre Heli.

A última vez que vi o Padre Heli ele já havia se aposentado.

Eu estava casado e morava em São Paulo.

Numa de minhas idas a Belo Horizonte, junto da Vera, tomei a iniciativa de visitarmos o santo Padre.

Ele ficou muito feliz em nos vermos.

O Mário Lucio que foi seu coroinha e a Vera que muitas vezes foi Verônica na procissão da Sexta-feira, além de catequista da igreja Senhor Bom Jesus.

Padre Heli estava muito abatido.

Durante muito anos, viveu com um só pulmão. Agora, tinha a saúde ainda mais abalada por causa de uma diabete, doença que causou a amputação de uma perna.

Ele estava em uma cadeira de rodas e nos recebeu com muita alegria e o amplo sorriso de sempre na Casa Paroquial da mesma igreja onde ele trabalhou por mais de 30 anos.

Falou sorridente de sua saúde:

– Eu me cuido muito. Quero muito a vida. Sabe, eu gosto muito de Deus, mas é Ele lá no Céu e eu aqui na Terra.

Morreu poucos meses depois.

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Mário Marinho – É jornalista. É mineiro. Especializado em jornalismo esportivo, foi FOTO SOFIA MARINHOdurante muitos anos Editor de Esportes do Jornal da Tarde. Entre outros locais, Marinho trabalhou também no Estadão, em revistas da Editora Abril, nas rádios e TVs Gazeta e Record, na TV Bandeirantes, na TV Cultura, além de participação em inúmeros livros e revistas do setor esportivo.

(DUAS VEZES POR SEMANA E SEMPRE QUE TIVER MAIS
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