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A ‘moderação’ das fake news. O jeitinho (in)constitucional. Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

A ‘MODERAÇÃO’ DAS FAKE NEWS. O JEITINHO (IN)CONSTITUCIONAL.

MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO

… O que é absolutamente inconstitucional – incabível numa democracia – é estabelecer-se a censura, seja o nome que se lhe dê, sobre as manifestações do pensamento. A democracia não se defende por meios antidemocráticos, ao contrário, ela se fragiliza quando são eles tolerados…

Um fenômeno tipicamente brasileiro – reconhecem os sociólogos – é o “jeitinho”. Em face a dificuldades de toda espécie o brasileiro dá um “jeitinho” e as contorna. É visto este fenômeno como uma habilidade de que a nação tem de se orgulhar e certamente em útil em muitas situações. Mas há um limite a não ultrapassar – o respeito à Constituição.

Por inventivo que seja o jeitinho ele não pode servir para violar a Constituição, fugindo de suas proibições para obter uma finalidade qualquer, suposta, com razão ou sem razão, como necessária. Afinal o fim não justifica os meios.

Entretanto, nem todos se contentam com obedecer à Constituição e se dispõem a usar de jeitinho para alcançar uma finalidade que pretendem necessária, urgente e imediata, qual seja a proscrição das fake News. É o que se vai estudar aqui, ainda que sem entrar em questões sobre o que são estas e seu enquadramento criminal (o que aliás foi feito noutro trabalho já divulgado).

O problema que se tem pela frente é simples. Como impedir que circulem “fake News”, “discursos do ódio” que só pelo enunciado já assustam e preocupam, sem estabelecer um sistema que previamente selecione o que deve circular e o que não deve circular?

Tal sistema importa num exame, obviamente prévio, da matéria que se pretende divulgar. Este exame é que há de identificar o que são fake News ou discursos do ódio – o que de per si não será sempre fácil.

Entretanto, este problema simples depara com um óbice consagrado pelas Constituições porque perigoso e potencialmente daninho para a democracia. Sim, porque esse sistema de exame prévio existe há séculos e sobrevive em regimes autoritários e totalitários – cujo caráter, também obviamente não é democrático. Chama-se censura. Não é esta uma verificação quanto ao conteúdo legítimo ou ilegítimo de algo para que se selecione o que pode divulgar?

JEITINHO - CENSURA?

Ocorre, porém, no Brasil da Nova República – que consagra o Estado democrático – a Constituição em vigor proíbe a censura. E ela o faz expressamente duas vezes. No art. 5º,

 IX, onde está: “É livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. E, como se isto não bastasse, volta a insistir na proibição no art. 220, § 2º´, ao tratar da comunicação social. Neste se lê: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Tal proibição, ademais, é decorrência inafastável da liberdade de manifestação do pensamento que é reconhecida no art. 5º, IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

Que significa proibição da censura?

Não é preciso sequer buscar a opinião dos grandes juristas ou a jurisprudência das mais Altas Cortes para sabê-lo. É a verificação (obviamente prévia) de que todas a manifestações da expressão do pensamento estão isentas de exame por parte de quem quer que seja antes de sua divulgação.

Isto não significa que o autor da manifestação possa “dizer” o que quiser sem sofrer punição, mas que ele responderá pelo que fez, se tiver incorrido em crime – p. ex., calúnia, difamação e injúria ou apologia do crime ou do criminoso (que pune o Código Penal, arts. 137, 139, 140,287) – nem se falando dos que define a lei de segurança nacional. Esta, por exemplo, qualifica como crimes a propaganda de “processos violentos ou ilegais para a alteração da ordem política e social, de discriminação racial”, etc. (art. 22) e também “caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação” (art. 26).

Na verdade, a responsabilidade não se limita ao plano criminal, mas também importa na indenização por dano material, moral e à imagem, como prescreve a parte final desse art. 5º, V. E, para ensejar esta responsabilização, a parte final do art. 5º, IV proíbe o anonimato. Afora o direito de resposta que é atribuído à vítima (art. 5º, V).

Excepcionalmente – é verdade – a Constituição tolera a censura, prévia – sendo redundante. Ela o faz na hipótese de “comoção grave de repercussão nacional”, de “declaração de guerra”, de “resposta a agressão armada estrangeira”, ou da ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa. E para tanto é preciso seja decretado o estado de sítio pelo Presidente da República, devida e expressamente autorizado pelo Congresso Nacional (art. 137, caput, combinado com o art. 139, III). Está aí patente que apenas ela se admite em casos de ameaça grave e extraordinária à ordem pública e à incolumidade nacional.

JEITINHO – CENSURA, NÃO!

É fácil apreender o motivo da proibição da censura.  A expressão do pensamento é essencial à democracia. É por meio dela que as ideias circulam, os conhecimentos se espalham, formam-se as convicções políticas, ou seja, é por meio dela que o povo se instrui sobre o que se passa no mundo. Sem ela, o povo decidiria às cegas – seria melhor o sorteio para as funções públicas. Pior, o mundo não evoluiria, porque ficaria estagnado no saber que adotaria os donos do poder – os que poderiam efetivar a censura. A própria democracia surgiu da liberdade de expressão do pensamento. Não teria vingado se a censura das monarquias houvesse sido capaz de impedir a difusão de seu ideário (o que prova, ademais, que a censura acaba por ser superada, mas ao preço da persistência do atraso.

Contudo, apesar da clareza da Constituição, o projeto de lei em tramitação – nº 2.630/20 – que pretende “instituir” a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” institui a censura prévia das comunicações via internet.

É evidente que não usa da expressão censura – e aí se insinua o jeitinho. Mas, sem empregar o termo, estabelece-se um sistema que permitirá excluir a divulgação de informações, ideias e outras manifestações do pensamento por meio da internet. Ou seja, dá-se a um novo nome ao que constitui censura e espera com isso fugir da inconstitucionalidade. Fácil, não?

E tal jeitinho é tão hábil que – se me for permitida uma expressão vulgar num trabalho jurídico – permite que a censura seja feita “com a mão do gato”.

A censura das fake News, dos discursos do ódio (e sabe-se lá o que se acrescentará à lista mais adiante) se fará num “procedimento de moderação”. Este excluirá o que for fake News, etc., do meio de divulgação, portanto bloqueando uma expressão do pensamento. E o fará segundo bem parecer ao “censor”, pois – – veja-se o art. 12 do Substitutivo – poderá ser feito sem formalidade desde que este “moderador” julgue poder ocorrer, entre outras, as hipóteses de: “I – dano imediato de difícil reparação”; ou, “II – segurança da informação ou do usuário”.

E para disfarçar, mas acentuando o pleno arbítrio do censor, o texto dispensa “ordem judicial”, mas hipocritamente e determina se respeite a “defesa e o contraditório”, claro que posteriormente ao expurgo. Assim, o Substitutivo, pensando salvar as aparências, admite que o autor censurado obtenha a revogação decisão, ou seja, consiga uma “licença” para a divulgação da expressão do seu pensamento. E licença para a expressão do pensamento é desnecessária, segundo a parte final do art. 5º, IX da Constituição, já citado.

JEITINHO – QUE “ELES” FAÇAM

Note-se quem fará essa censura. Não um braço oficial da administração pública. Isto seria ostensivo demais. E sim pelos provedores de redes sociais da transmissão cibernética e de serviços de mensageria privada… Consequentemente, estes ganhariam o poder de vida e de morte sobre as ideias, comunicações, etc., que o cidadão, na livre expressão do seu pensamento, quiser difundir. E seriam estimulados a fazê-lo mesmo em casos duvidosos, porque do contrário correriam o risco de pesadas multas. Com efeito, o art. 31, II do Projeto prevê “multa de até 10% do faturamento do “grupo econômico no Brasil no seu último exercício”.

Mais. Quem poderá assegurar que o “gato” seja capaz de distinguir a informação da desinformação, a verdade da mentira? Ou não irá além, se tiver a tentação de manipular o controle, favorecendo o que lhe agrada, condenando o que lhe desagrada? Ou o que serve e o que não serve para quem o “dono” do sistema de comunicação?

Todo este aranzel de inconstitucionalidades é justificado pela famigerada difusão de “fake News” que gera ódios, ameaça autoridades e até Poderes. É ela eminentemente antidemocrática. De acordo, ela o é, mas cabe indagar se as “fake News” se enquadram nalgum crime dos que as leis definem. Se isto ocorre, aplique-se a lei. Ou se há alguma conduta que mereça criminalização e ainda não esteja criminalizada defina-se o crime. Se o problema é da identificação do responsável pelo crime, estabeleçam-se normas que permitam essa identificação. Aqui não cabe argumentar com a privacidade, pois a Constituição proíbe o anonimato (art. 5º, III).

O que é absolutamente inconstitucional – incabível numa democracia – é estabelecer-se a censura, seja o nome que se lhe dê, sobre as manifestações do pensamento. A democracia não se defende por meios antidemocráticos, ao contrário, ela se fragiliza quando são eles tolerados.

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho –  Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

 

 

SP 12/07/2020

 

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