Constituição

Uma nova Constituição? Por Manoel Gonçalves Ferreira Filho

UMA NOVA CONSTITUIÇÃO?

POR MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO

 … Quanto ao copismo, sentiria a necessidade de fazer aqui o que se faz ali. Se lá se faz um plebiscito, aqui se faça um plebiscito, se lá se elaborará uma nova Constituição, aqui se elabore outra Constituição. Preferivelmente copiando outra Constituição, feita para outro povo e outras condições, segundo a moda…

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A rapidez com que a aprovação de um plebiscito no Chile prevendo a elaboração de uma nova Constituição repercutiu no Brasil não suscita surpresa para ninguém. Provoca algumas observações que já foram muitas vezes feitas, mas que se tornam de novo atuais.

A primeira concerne ao caráter nacional brasileiro. Os sociólogos já discutiram se há um ou não um caráter próprio a cada povo e a medida em que esse caráter pode ser inventado para fins políticos ou patrióticos.

Para o próprio povo, tal caráter é uma verdade indiscutível. Prova disto aparece clara (no passado, porque hoje seria politicamente incorretíssimo fazê-lo) os humoristas usavam caracteres estereotipados nas anedotas sobre português, alemão, judeu e até dos próprios brasileiros. Quem quiser exemplo, leia as crônicas de Humberto de Campos, da Academia Brasileira de letras, na coletânea assinada pelo Conselheiro XX (livro então pecaminoso, hoje inocente).

Já se discutiu a sério o caráter nacional brasileiro, por intelectuais de reconhecido valor, como Sérgio Buarque de Holanda, José Honório Rodrigues, Gilberto Freire, frei Vicente do Salvador etc. Para uns, o brasileiro seria o um homem cordial, para outros um emotivo, para terceiros o mestre do jeitinho, para alguns não seria republico. Para um famoso craque do futebol – o Gerson da seleção de 1970 – uma característica seria sempre querer aproveitar vantagens…

Para muitos, teria tendência aos modismos e ao copismo. Os modismos, porque sempre quereria estar na moda – intelectual, é claro – e assim enfatizaria ora antirracismo, ora o ambientalismo, quando não doutrinas políticas como o nazismo, o fascismo e o estalinismo (poupe-se Marx). Quanto ao copismo, sentiria a necessidade de fazer aqui o que se faz ali. Se lá se faz um plebiscito, aqui se faça um plebiscito, se lá se elaborará uma nova Constituição, aqui se elabore outra Constituição. Preferivelmente copiando outra Constituição, feita para outro povo e outras condições, segundo a moda. Esta já foi a americana em 1891, a portuguesa em 1988. (E no dia seguinte à promulgação da nova já se recomece a reivindicação de uma outra).

Na verdade, este copismo quanto à mudança de Constituição – diria um observador realista – seria na atualidade perfeitamente dispensável. Com efeito, os guardiões da Constituição já a alteram quase que diariamente, segundo o seu arbítrio monocrático.

Como, todavia, a questão merece um tratamento mais sério, cabem algumas observações.

A primeira é que não basta redigir uma Constituição tecnicamente perfeita, adotando os mais lídimos princípios da democracia, para fazer uma democracia. Não haverá democracia onde não houver democratas, onde o povo e seus eleitos não se compenetrarem de que o interesse geral deve preponderar sobre os interesses particulares. Um tal de Montesquieu, no século XVIII, escreveu algo sobre isto. Se bastasse a técnica, os eminentes redatores de 1891, 1934, 1946, 1967, 1988, já o teriam feito na perfeição. E entre elas estavam ilustres e louvados mestres que se se inspiraram em ilustres e louvados mestres como Canotilho e Friedrich Mueller da última vez. (E – cá entre nós – o resultado…).

Outra a de que não basta inserir princípios e valores, programas e regras, para que se resolvam problemas econômicos e sociais. O idealismo pode inscrever tudo o que for desejável no texto, pretender dirigir a atuação governamental de modo obrigatório (como os iluminados do momento o desejam). Sua concretização jamais dependerá apenas da vontade dos governantes ou dos guardiões da Constituição.

Como disse Ives Gandra – cito de memória – a Constituição de 1988 não cabe no PIB do país. E não é a Constituição que faz esse PIB, embora possa fazê-lo cair (e mais raramente crescer).

Nem vale a pena mudá-la casuisticamente para resolver problemas menores de qualquer ordem, mesmo que seja permitir a reeleição dos estão proibidos de sê-lo…

Ademais, seriam os novos constituintes diferentes dos do passado? Não seriam eles os mesmos que hoje ocupam os cargos eletivos? Se não governam satisfatoriamente, seriam capazes de estabelecer uma Constituição melhor do que conduzir os negócios públicos? E não se pense que uma Constituinte “exclusiva” será composta de outros que não aqueles que se dedicarão a defini-la, para dela usufruírem e com ela governarem. Salvo se o Espírito Santo descer sobre eles. Sobre esta hipótese não me manifesto, há muitos cardeais, bispos, bispas, pastores e pastoras que podem responder melhor do que eu.

A Constituição vigente tem inegáveis defeitos. Fui crítico do Anteprojeto dos Notáveis e sou crítico de seu texto definitivo. Veja-se o meu livro Constituição e governabilidade, por exemplo. Assim, nunca fui dos que a exaltaram e há muito aponto os seus defeitos, as suas distorções – monocráticas ou não – já me empenhei em sugerir emendas e aprimoramentos – como um semipresidencialismo. Entretanto, não me parece ser este o momento de refazê-la  por inteiro.

Nem para que sejam incluídos mais deveres dos que estão no título (porque no texto não há explicitamente nenhum) do capítulo 1º, Parte II da Constituição vigente, o que é desnecessário, porque tais deveres são a contrapartida natural dos direitos e princípios que a Lei consagra.

Nem vale a pena mudá-la casuisticamente para resolver problemas menores de qualquer ordem, mesmo que seja permitir a reeleição dos estão proibidos de sê-lo.

Quanto à supressão dos “privilégios” não há garantia alguma de que uma nova Constituição as suprimirá, pois sofrerá, como a atual sofreu, a ação dos interesses corporativos, seja de funcionários, seja de sindicatos, seja de grupos de interesse – econômicos, religiosos, culturais – seja dos próprios meios de comunicação de massa e seus agentes.

Na verdade, falta um debate aprofundado sobre os pontos a consagrar numa nova Constituição. Longe está o consenso a respeito de decisões cruciais para a democracia e os direitos fundamentais, bem como para as transformações econômicas e sociais necessárias. Prova disto é a radicalização a que se assiste, em que até o remédio para a peste é politizado.

Neste quadro, os radicais vencedores certamente se entusiasmarão com a vitória e quererão impor suas ideias, seus preconceitos, a dano da pluralidade, portanto, da liberdade e da igualdade.

Uma nova Constituição seria mais do mesmo, feitas pelos mesmos “mandatários” que partilham o poder para ficarmos na mesma, ou pior. Melhor seria consertá-la parte por parte, com debate aprofundado, ponderação e consenso, do que o risco de ganharmos nada, trocando – como diria o povo – seis por meia dúzia.

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho –  Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

 

 

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