MEDÍOCRES -censura

A reação dos medíocres. Por Edmilson Siqueira

A REAÇÃO DOS MEDÍOCRES

EDMILSON SIQUEIRA

…a Nicarágua aprovou uma lei, por larga maioria, que regulamenta a Imprensa no país. “Regulamenta” quer dizer que nenhum órgão de imprensa poderá publicar qualquer notícia contra o governo, incluindo aí qualquer crime que o governo venha a cometer. Fake news também serão reprimidas – e qualquer crítica aos governantes será considerada, claro, fake news. Pena: vai de quatro a seis anos de prisão…

MEDIOCRES

Em 1977, em Campinas, eu e o fotógrafo Neldo Cantanti fizemos uma reportagem sobre um problema na estação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que acho que já se chamava Fepasa. Era véspera de um feriado prolongado e muita gente resolveu viajar de trem. A estação lotou e, como mais gente estivesse chegando, o chefe do local mandou fechar as portas da dita cuja. Quando chegamos, havia um multidão do lado de fora olhando para as portas cerradas do prédio. Neldo e eu nos identificamos e conseguimos entrar por uma porta lateral. Lá dentro, Neldo fez as fotos e eu entrevistei o chefe da estação e alguns passageiros que estavam na plataforma.

Foi então que chegaram dois brutamontes da “polícia ferroviária”. Dizendo que a estação era área de segurança nacional e que não podia ser fotografada, exigiram o filme da máquina. Neldo se recusou, tentou enrolar mas, diante da ameaça até de prisão, ele acabou entregando o filme. Assim mesmo ficamos detidos por cerca de 30 minutos numa sala vigiada por um dos guardas.

Liberados, saímos do prédio. Ao entrarmos no carro, Neldo tirou do bolso da jaqueta um filme e me disse: “Eles levaram um filme vazio. As fotos estão nesse aqui.” Experiente, ao perceber a aproximação dos brutamontes, ele tirou o filme da máquina e, rapidamente, colocou outro.

Fiquei feliz, pois no texto poderia contar tudo e as fotos internas da estação estavam garantidas. Foi o que fiz. Em duas laudas contei o problema da lotação, o que disseram os passageiros e o chefe. Numa terceira lauda escrevi a repressão que sofremos, detalhadamente, e a esperteza do Neldo que enganou as “otoridades”.

Logo após entregar o reportagem para o editor, o então diretor da Redação, Romeu Santini (já falecido), se aproximou de mim, elogiou o texto, mas disse que aquela história da repressão não precisaria ser contada, afinal, o importante era a história da lotação e da porta fechada etc. e tal. E, na minha frente, rasgou a lauda que  contava a repressão que sofremos.

Ele rasgou não só porque era partidário da ditadura militar que, em 1977, ainda estava bem forte, mas por receio de que a “censura” baixasse no jornal. A censura era regulamentada pela Lei de Segurança Nacional, pelo AI-5, pela Lei de Imprensa (feita pela ditadura), pelo general de plantão, pelo guarda de esquina e por diretores de redação e jornalistas como Santini.

Lembrei dessa história ao ler que a Nicarágua aprovou uma lei, por larga maioria, que regulamenta a Imprensa no país. “Regulamenta” quer dizer que nenhum órgão de imprensa poderá publicar qualquer notícia contra o governo, incluindo aí qualquer crime que o governo venha a cometer. Fake news também serão reprimidas – e qualquer crítica aos governantes será considerada, claro, fake news. Pena: vai de quatro a seis anos de prisão.

Ou seja, a reação dos medíocres é sempre a mesma. Pois é assim que as ditaduras ou governos que querem transformar a democracia em totalitarismo tentam se sustentar. No Brasil pós AI-5 as emissoras de televisão eram totalmente subordinadas ao poder, pois podiam ter a licença cassada (e seriam mesmo). A Globo da época ainda tinha no diretor de Jornalismo, Armando Nogueira, um negociador diário com os homens de farda, tentando liberar reportagens para a telinha. A esquerda o execrava, numa das muitas injustiças que ela cometia, mais isso é outra história. O resto não precisava negociar nada, pois “andava na linha”.

Os maiores jornais e revistas chegaram a ter censores na Redação. Ficaram famosas as receitas de bolo nas páginas do Jornal da Tarde e os poemas de Shakespeare no Estadão, colocados ali para preencher o espaço de reportagens cortadas pelos censores. A Veja chegou a ser retirada das bancas. O pessoal do Pasquim foi pra cadeia por três meses, sem acusação formal.

…O que acontece na Nicarágua, já aconteceu na ditadura brasileira, na ditadura argentina, na ditadura chilena e, em grau mais avançado ainda, acontece na Venezuela. Nos países onde o comunismo dominou totalmente, a imprensa privada foi simplesmente dizimada e, no lugar dela, foi colocada a imprensa oficial:…

Já na democracia, a esquerda, durante o governo Lula, tentou, por várias vezes, implantar uma “regulamentação” à imprensa. Não foram poucos os seminários espalhados pelo país sobre o tema. Aqui mesmo em Campinas aconteceu um desses, organizado por uma jornalista (vejam vocês…) na Câmara de Vereadores. O objetivo era criar um Conselho Nacional para fiscalizar as publicações. Claro que o Conselho teria maioria (se não fosse a totalidade) dos jornalistas e outros cupinchas do poder que determinariam o que poderia ou não ser publicado, de modo a “democratizar os meios de comunicação” como repetiam esses arautos da desintegração da liberdade.

No atual governo, tendo em vista que a censura propriamente dita era uma prática costumeira em governos elogiados pela esquerda, a prática para ter um jornalismo favorável mesmo realizando um governo porco, foi comprar emissoras  e jornalistas com anúncios, além de manter uma rede de blogueiros e outros tipos de “influenciadores em busca de uma grana” para falar bem do governo e mal dos adversários. Nessa última prática a cópia do que fazia o PT foi descarada.

O que acontece na Nicarágua, já aconteceu na ditadura brasileira, na ditadura argentina, na ditadura chilena e, em grau mais avançado ainda, acontece na Venezuela. Nos países onde o comunismo dominou totalmente, a imprensa privada foi simplesmente dizimada e, no lugar dela, foi colocada a imprensa oficial: tudo a que o povo tinha acesso em forma de notícia passou a ser produzido pelo próprio governo. O apelido “imprensa chapa branca” vem daí e, hoje, se aplica também a órgãos e jornalistas que, mesmo sendo privados, fazem jornalismo agradável ao poder e, de modo canalha, recebem por isso.

A dedução é que não importa se o regime autoritário é de direita ou de esquerda: a imprensa ou é a favor dele ou sofrerá as consequências por querer praticar a liberdade de pensamento e expressão.

Mas resistiremos.

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Edmilson Siqueira é jornalista

1 thought on “A reação dos medíocres. Por Edmilson Siqueira

  1. Sobre o “episódio Fepasa”: aos olhos da ditadura, vocês cometeram um crime!
    O que os “garantistas” dos dias atuais deveriam entender é que crimes, ÀS VEZES, não só DEVEM como PRECISAM ser cometidos.
    A esse respeito, sempre que posso, recomendo o filme “Mississipi em Chamas”. A temática é o racismo, mas a lição a ser tirada é a mesma!

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