LEITE CONDENSADO

O leite condensado e o rabo. Por José Horta Manzano

O LEITE CONDENSADO E O RABO

JOSÉ HORTA MANZANO

O pudim de leite de minha avó não levava leite condensado. Preparado com leite, ovos e açúcar, ia ao forno em banho-maria e lá ficava um bom tempo. Dava muito trabalho, mas o resultado era esplêndido, como se dizia na época. Nada a ver com esses pudins melequentos e enjoativos de hoje.

Estive pesquisando sobre a produção de leite condensado no Brasil. Aprendi que teve início nos anos 1920. Mas uma coisa é produzir, outra coisa é vender. Nos arquivos do jornal Folha de S. Paulo, a primeira menção a esse produto só aparece, tímida, em 1933. Era então apresentado como alimento para “creanças, doentes e adolescentes”.

Em 1934, é citado mais duas vezes. No ano seguinte, aparece de novo uma vez só. É a prova de que estava ainda longe de se tornar artigo de consumo popular. Acostumadas ao leite fresco, as cozinheiras resistiram um bom tempo antes de adotar o produto enlatado. A difusão do leite condensado entre as donas de casa (é assim que se dizia na época) só ganhou força a partir dos anos 1950.

Na Europa, leite condensado não é produto de grande consumo. Nas raras vezes em que comprei, tive de perguntar pra saber em que gôndola estava escondido. Costuma ser apresentado em dois tipos de embalagem: latinha e tubo (do tamanho do tubo de maionese). Há ainda duas opções: com açúcar e sem. O que não contém açúcar é mais vendido que o adoçado.

A razão é simples. Em princípio, leite condensado é visto como substituto do leite fresco. Para pessoas que gostam de tomar café com pouquíssimo leite, não é interessante comprar leite de caixinha. Vai estragar antes de ser consumido. Esse cliente prefere comprar leite condensado de tubinho. Usa um pouco de cada vez, põe a tampa, e o produto não estraga.

CONDENSADO

Conforme o país e determinadas características de fabrico, a denominação varia: leite condensado, leite concentrado ou leite evaporado. Na culinária europeia, não é ingrediente constante. Continua sendo visto, não como um produto em si, mas como substituto do leite fresco. Não frequenta os livros de doçaria. É produto para se ter guardado no fundo da prateleira para alguma emergência.

Se, por milagre, minha avó ressuscitasse, havia de levar muitos sustos. Como primeira providência, ela certamente sairia correndo pra comprar um jornal, que sempre foi um hábito diário.

Havia de ficar encantada de encontrar um mundo bem mais colorido do que o que ela conheceu. É verdade que automóveis perderam a cor e se limitam hoje a preto, branco, tons de cinza e algum bordô. Em compensação, os jornais perderam a monotonia do preto e branco e são impressos em cores. A tevê também – que era um chuvisqueiro cinzento – ganhou cores vivas. E as roupas, então! Uma policromia!

No entanto, ele havia de ficar assustada de ver que o Brasil tem agora um presidente que solta palavrão em público. E palavrão pesado, daqueles que, quando aparecem no jornal, vêm com tarja preta.

E havia de ficar abismada de ler, por detrás da tarja acanhada, as palavras presidenciais. E havia de ficar aterrada ao perceber que o presidente sugeriu à imprensa enfiar leite condensado num lugar que, (apesar de ela não captar direito qual poderia ser), intuiu que fosse impublicável. E enfiar com lata e tudo!

Pasma com o desvio de finalidade de um produto que já foi precioso, raro e caro, não tenho dúvida: ela pediria imediatamente pra ser levada de volta ao lugar de onde veio. E remataria em seu mineirês do século 19: «Arre! Este mundo não serve mais pra mim não, gente. Me deixa muito aflita! Ocês, que são brancos, que se entendam. A conversa tá muito boa, mas eu já vou indo.»

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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