Vozes e sortilégios d’amor

Vozes e sortilégios d’amor. Por Antonio Contente

Vozes e sortilégios d’amor
Flor de AMORA

Recordação é a voz do passado nos contando coisas. Ela não ecoa, sussurra, como um suspiro que nos vai tomando a ponto de se tornar algo que alimenta tanto quanto a respiração. Essas vozes estão em tudo que nos cerca em qualquer época da vida. Quando criança, sem ter ainda o que recordar, morando num casarão de madeira numa ilha que flutuava nas águas de um rio imenso, na Amazônia Profunda, os galhos, as folhas, os troncos, as nuvens, o céu, os passarinhos, os peixes que saltavam das profundezas a fugir dos botos, tudo já me falava. E hoje, passado tanto tempo, se eu pudesse ali voltar, com certeza me contariam coisas; a permitir que uma dobra de vento, a escorrer entre as seringueiras, me premiasse com um “tu te lembras”?

Nestes tempos, com idade da qual já perdi a conta, e este isolamento sem luz no fim do túnel determinado pela peste que, dizem, acalmou mas está em cada esquina, as vozes me chegam, felizmente, como carícias. Falo com as manhãs, com as noites, mas do que gosto, mesmo, é de falar com as tardes. Dizia eu ontem a uma delas que queria que me devolvesse pequenos instantes que fossem de certas horas vespertinas passadas nas quais estive envolvido em esperas. De repente os passos, o bater na porta, e, com esta aberta, ser envolvido pelo perfume. Ter nas minhas mãos as mãos, nos meus pobres olhos os olhos, e ver entregue às suaves luminosidades do sol, a caminho do se por, a certeza das eternidades; a suavidade do completo, e  o musical murmúrio do amor que é sempre som banhado de infinito.

Falo com paredes e janelas. As primeiras, por aquilo que guardam; as segundas, por aquilo que mostram. Quanta coisa me contou, por exemplo, aquela que se abria sobre os telhados de uma velha cidade europeia com o Adriático a bater em suas calçadas. Cheguei ao hotel, subi, e ao abrir as folhas que sombreavam o peitoril vi, no primeiro plano, as telhas marcadas pelos limos do tempo, pelos carunchos que testemunharam tantas chuvas e neves, a receber incontáveis ventanias; mais adiante, o mar. São particularmente preciosas as janelas que se abrem sobre as águas que nunca se sabe se começam ou terminam na linha do horizonte. E, naquele vasto pedacinho de oceano, passavam velas. Azuis umas, verdes outras, a empurrar pequenas embarcações que, como sempre, deslizam para um roteiro de sonhos. Ah, as vozes daquela imensidão. Tantas vezes estou deitado, noites altas, madrugadas densas, quando chegam. Dialogam com a insônia. Revelam que as belezas são os enfeites que aperfeiçoam as claridades. E que esta luz sobre o belo é a matéria prima das revelações.

Dia desses, na subida de uma das ruas desta Chácara da Barra para o logradouro que chamo de Praça dos Pássaros, as amoreiras me perguntaram se eu lembrava da idosa senhora das cinco da tarde. Ela ia sempre, nos velhos tempos, logo que mudei para o bairro, nesse horário, catar as amoras que os pássaros faziam cair e as que caiam sozinhas. Tínhamos diálogos breves, de vez em quando até batíamos uns copinhos de cerveja no Bar de Cima. Um dia perguntei sobre as amoras. De vez em quando, tem que ser no horário do fim das tardes, ela respondeu, pego as frutinhas para fazer a geleia mágica.

         — Mágica? Por que mágica? – Indaguei.

         — Porque é uma formula muito antiga, que veio da Índia.

         — Bom – admiti – da Índia sempre pintam coisas inusitadas. Sua geleia faz, por acaso, as pessoas enriquecerem?

         — Não – ela sorriu – melhor. Faz amores eternos.

         — Assim, sem mais nem menos?

         — Não, há certo ritual a ser cumprido. Para que o amor dure para sempre, você tem que fazer o sua parceira comer um pouco da geleia exatamente à meia-noite, com lua cheia no céu. Depois, tem que pegar a colher que ela usou e, sem lavar, enterrar junto às raízes de uma roseira que tenha penduradas em seus galhos pelo menos duas flores com pétalas vermelhas. Necessariamente desta cor.

Achei a história interessante e perguntei desde quando ela fazia aquilo. Ah, respondeu, desde muito tempo, quando ainda nem havia a Chácara da Barra e eu morava em outro bairro. Perguntou se eu imaginava quantos anos ela poderia ter, respondi que não, e ela mostrou nos dedos que no Outono que então se aproximava, faria 90. Acentuando que trabalhava com a geleia desde os vinte.

Era natural que eu perguntasse, e perguntei, se naqueles anos todos ela tinha colaborado para um caso de amor eterno que fosse realmente curioso. Lembrou então que a totalidade das pessoas que a procuravam eram mulheres, mas, certa vez, um moço bateu na casa dela. Para lhe dizer, quase em tom de apelo:

         — Preciso que meu amor dure para sempre.

         — E o fato – eu quis detalhes – se tornou curioso por que? Só pelo fato do consulente ser homem?

         — Não, é que ele queria a geleia não para dar à esposa, na noite de lua, mas a uma colega de trabalho, também casada, com quem estava tendo um caso.

         — Bom – levanto a dúvida – vai ver que por causa do pecado do duplo adultério a simpatia não deu certo.

      — Deu sim. Amores em namoro com o eterno tornam todos os pecados, até os ditos mortais, em apenas veniais. O casal, livre das amarras anteriores, já passou das de Prata; e está prestes a completar as Bodas de Ouro…

ANTONIO CONTENTE, TODAS AS SEGUNDAS, AQUI NO CHUMBO GORDO!

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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