avessas Brasil

Alguns pontos que comprovam que vivemos em um país às avessas.

… o Brasil também é um país às avessas porque aqui políticos corruptos cometem seus crimes quando jovens e só começam a cumprir a pena — isto é, quando cumprem! — quando já estão velhos, cheios de supostas doenças, e assim têm direito a prisão em regime domiciliar em suas luxuosas mansões com piscina…

um pais às avessas

Às vezes penso que o Brasil é um país que nasceu do avesso. E digo isso comparando-o não só aos países desenvolvidos, mas até aos nossos vizinhos latino-americanos. Senão vejamos.

Graças à abundância de rios, o Brasil tem a maior produção de energia hidrelétrica do mundo, uma energia limpa, renovável e praticamente infinita. No entanto, todo o transporte e escoamento da nossa produção, bem como todo o deslocamento de nossa população de uma cidade para outra, se dá por meio rodoviário, queimando petróleo e produzindo os famigerados gases do efeito estufa, causadores do aquecimento global. O Brasil praticamente não tem ferrovias, um meio de transporte de cargas e de passageiros muito mais rápido e seguro que o rodoviário, e sobretudo um meio de transporte limpo, já que os trens são movidos a eletricidade. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, é possível ir de trem de qualquer lugar a qualquer outro de forma barata, veloz, confortável e sem riscos de assaltos no meio do caminho. Aqui, as mercadorias têm de ser transportadas por rodovias esburacadas e inseguras em caminhões conduzidos por motoristas insones, movidos a cocaína ou “rebite”, pondo em risco sua própria segurança e a dos outros motoristas. Caminhoneiros dopados, que viram a noite sem dormir para poder fazer mais viagens, cumprir prazos e compensar a pobreza do valor do frete que recebem. E todos nós ficamos nas mãos desses profissionais, que param o país quando fazem greve para reivindicar um aumento nesse valor ou para apoiar algum governo de extrema direita.

Mas não é só isso. O Brasil também é o único país de que tenho notícia em que há duas polícias, uma civil e uma militar, e que não se conversam, não se entendem, não se entrosam, não compartilham informações — isso quando não entram em conflito entre elas. E o político que tentar unificá-las corre risco de vida. Enfim, temos duas polícias que não valem por uma, haja vista o assustador crescimento da violência e do crime organizado. Duas polícias desaparelhadas, sucateadas, com policiais despreparados, mal treinados, mal remunerados, estressados, assediados e hostilizados pela população e pela imprensa.

Além disso, devemos ser o único país cujo sistema prisional admite visita íntima (imagino até que haja um quarto dentro dos presídios com cama redonda, espelho no teto e banheira de hidro, não?), saidinha de Dia dos Pais (mesmo para quem cumpre pena por ter matado os pais), progressão de regime após cumprir-se um mísero sexto da pena, uma coisa inexplicável chamada “regime aberto”, em que o criminoso é condenado a cumprir pena em liberdade, outra coisa inexplicável que é o investimento de dinheiro público na ressocialização de quem tem uma ficha criminal quilométrica e está condenado a centenas de anos de prisão, inclusive por crimes hediondos e de alta crueldade, além do limite máximo de encarceramento de 40 anos (antes eram 30), não importa o tamanho da pena do meliante. Mas o mais legal de tudo é que os presos podem usar telefone celular dentro dos presídios para poder continuar cometendo crimes. A penitenciária permite aos criminosos acesso à internet (acho até que lhes fornece login e senha) e mais, as celas dispõem de tomadas para que os detentos possam recarregar seus aparelhos. Além disso, visitantes podem levar qualquer coisa para dentro dos presídios, até armas (revista vexatória é proibida), e membros de quadrilhas podem atirar celulares e drogas por cima dos muros da prisão, que por sinal são feitos de blocos ocos de cimento, fáceis de quebrar com uma marreta, explosivos ou até a colisão de um veículo.

Em países sérios, as prisões têm parlatório, de modo que os presos e suas visitas, inclusive advogados, só podem falar por meio de um interfone, sem nenhum contato físico e sempre sob a vigilância de um agente penitenciário. Em países como o Japão, o presidiário não pode sequer olhar nos olhos do agente, e todos se alimentam no refeitório em absoluto silêncio. Em muitos países, os condenados são obrigados a trabalhar, e na imensa maioria deles o prisioneiro cumpre a pena integralmente — se for condenado a mais de 50 anos, provavelmente morrerá na cadeia. Nesses países, há inclusive prisão perpétua e até pena de morte. Liberdade condicional somente após o cumprimento da maior parte da pena e, mesmo assim, apenas em condições especiais.

Mas o Brasil também é um país às avessas porque aqui políticos corruptos cometem seus crimes quando jovens e só começam a cumprir a pena — isto é, quando cumprem! — quando já estão velhos, cheios de supostas doenças, e assim têm direito a prisão em regime domiciliar em suas luxuosas mansões com piscina, compradas com o dinheiro que roubaram do povo. E aqui juízes corruptos ou que não cumpriram adequadamente com suas obrigações não são exonerados a bem do serviço público, são condenados à aposentadoria compulsória, isto é, a ficar em casa recebendo seu salário integral sem trabalhar.

Neste país de cabeça para baixo servidores públicos são admitidos por concurso que não passa de uma prova de múltipla escolha, sem análise de currículo, sem entrevista, sem avaliação psicológica, sem dinâmica de grupo… E, uma vez admitidos, têm estabilidade no emprego, portanto não podem ser demitidos, não importa o quão incompetentes e improdutivos sejam. E ainda podem fazer greve durante meses, inclusive por motivos políticos, e o cidadão que precise dos serviços públicos e paga por eles que se dane! Com isso, a máquina pública só incha. (Vocês sabiam que o governo federal ainda têm datilógrafos, embora não existam mais máquinas de escrever? O governo aguarda ansiosamente que eles se aposentem porque não pode mandá-los embora.) E aí o ministro da fazenda não sabe como cumprir a meta fiscal e corta verbas da educação e da saúde.

Enquanto isso, a Constituição limita o teto salarial dos servidores públicos ao salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal, mas há juízes e desembargadores que ganham dez vezes mais do que isso, e ninguém pode cortar os seus vencimentos, pois eles fazem os próprios vencimentos. E o que dizer de senadores, deputados (federais e estaduais) e vereadores que aumentam seus próprios salários, em geral na calada da noite e bem acima da inflação? E que legislam em causa própria ou em beneficio de seus padrinhos o tempo todo? Até emendas à Constituição eles fazem por razões casuísticas, apenas para atender aos interesses dos lobbies que os elegeram ou para safar-se da cadeia.

No Brasil às avessas, pessoas largam o emprego para viver de benefícios pagos pelo Estado e completam a renda com “bicos”, trabalhos informais que não pagam impostos, não contribuem para a combalida Previdência Social, não requerem qualificação profissional nem contribuem para a produtividade do país e para o aumento do PIB. E o governo concede tanto mais benefícios quanto mais filhos as chamadas “mães solo” puserem no mundo.

No Brasil às avessas, músicas (músicas?!) que fazem apologia ao crime e aglomerações em que essas “músicas” tocam e há farto comércio e consumo de drogas são consideradas manifestações culturais. No país virado do avesso, um terço da população é analfabeta, adolescentes chegam ao ensino médio sem saber ler, e o sonho dos jovens e orgulho dos pais é serem influenciadores digitais, jogadores de futebol ou traficantes de drogas. No país da inversão de valores, as palavras “CLT” e “professor” são ofensas pessoais; já “MC” é elogio.

Falando em professor, o Peru tem universidades desde o século XVI e os EUA desde o século XVII. Em compensação, só tivemos nossa primeira universidade (mesmo assim, só no papel) em 1920; a primeira universidade “pra valer”, só em 1934.

Outra coisa: no século XIX, o Brasil era um país cem por cento agrícola, totalmente dependente da produção e exportação de café. Hoje, no século XXI, a principal atividade econômica brasileira é o agronegócio. Portanto, enquanto outros países emergentes (ou do Sul Global, como se diz hoje em dia), como China e Índia, fabricam e exportam produtos de alta tecnologia, com grande valor agregado, nós ainda produzimos commodities agrícolas, como no século XIX.

Por fim, em países sérios o presidente da república se pronuncia a partir de um púlpito atrás do qual há uma parede de cor sóbria em que estão fixados os símbolos da nação — o brasão de armas, o logotipo da presidência —, isso porque lá o presidente (ou primeiro-ministro) representa o Estado e não o governo de plantão. Aqui, ao falar publicamente, o presidente tem ao fundo um painel multicolorido com desenhos carnavalescos e o slogan de sua gestão: “Brasil, um país de todos”, “Pátria educadora”, “Pátria amada, Brasil”, “União e reconstrução”, etc. Aqui, o presidente não representa o Estado nem a nação, representa a si mesmo, ao seu governo e ao seu partido. Como em qualquer republiqueta bananeira.

E, com tudo isso, ainda acreditamos que somos um país relevante no contexto mundial.

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ALDO BIZZOCCHIAldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.

Autor, pela Editora GrupoAlmedina, de “Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”

Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br

1 thought on “Um país às avessas. Por Aldo Bizzocchi

  1. Não temos Prêmio Nobel, mas pagamos aos alunos de ensino médio de escola pública para frequentar a escola. Porque estudar com déficit de professores das ciências básicas e sem laboratórios adequados a essas matérias, formamos MC, influenciadores, analfabetos funcionais, etc. Mas todos com ensino médio para rechear as estatísticas de país escolarizado, com título de eleitor para votar, eleger e perpetuar, eternizar o país às avessas. Golpe de Mestre 20 anos depois do fracasso do Programa Fome Zero. Quem viveu viu; quem viver verá!

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