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Quando as crenças não são nossas. Por Zeina Latif

Não aderir à agenda ambiental implicará isolamento de países, com custos econômicos e financeiros


PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO, EDIÇÃO DE 27 DE ABRIL DE 2021

Importantes transformações históricas do Brasil decorreram mais de pressão internacional do que de anseios da sociedade. Esse padrão não é uma peculiaridade nossa, mas aqui a incidência parece maior, o que revela fraqueza institucional. O problema é quando relutamos às mudanças. O custo econômico e social é maior e de difícil superação.

A Independência do Brasil foi fruto de uma negociação com Portugal, com papel central da Inglaterra, sem participação popular, diferentemente da experiência norte-americana ou mesmo da América Espanhola. O Brasil Colônia não era um ambiente propício à construção da cidadania e a Independência pouco mudou aquela realidade.

Reflexo disso foi a Constituição de 1824 – a mais longeva de todas -, muito influenciada por crenças liberais no mundo, mas pouco efetiva na prática. Por exemplo, o voto tornou-se menos restritivo em termos de exigência de renda, mas não era o exercício de um direito. As eleições eram fraudulentas, manipuladas por elites locais e até violentas.

Foram instituídos direitos individuais, mas a Justiça era pouco acessível, levando o cidadão comum a recorrer à proteção dos grandes proprietários. Assim nasceu a nação brasileira: patrimonialista e patriarcal, para espanto de viajantes estrangeiros.

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, a ponto de causar estranhamento de países vizinhos. Demorou tanto que já eram poucos os escravos; 5% da população em 1887 ou 723 mil, aponta José Murilo de Carvalho.

A pressão da Inglaterra para o fim do comércio intercontinental de escravos vinha desde o início do século 19, sob influência de grupos religiosos, e se intensificou no acordo para a Independência, mas os tratados e as leis eram desrespeitados – o que remete à expressão daquela época “para inglês ver”.

A história se repetiu na Lei do Ventre Livre, com o registro fraudulento de nascimento de bebês de escravas, retroagindo para data anterior à lei.

Na sociedade escravocrata, demorou para o movimento abolicionista se configurar, no fim dos anos 1860, analisa Angela Alonso. Não havia consciência de direitos civis por parte da elite, sendo que poucos insistiram na necessidade de prover aos ex-escravos educação e assistência. Ficou a terrível herança.

A transição democrática do Brasil em 1985 se inseriu na terceira onda de democratização no mundo, nos anos 1980-90, decorrente da pressão externa de forças hegemônicas liberais no fim da Guerra Fria. Ocorria o gradual fortalecimento do multilateralismo, enquanto ideais de democracia e respeito aos direitos humanos passavam a prevalecer nas relações internacionais.

A inserção dos países na globalização dependia da democratização dos países, sob pena de sofrer os custos e constrangimentos de não estarem alinhados a esses valores.

Nessas condições, a inserção do liberalismo na política é mais limitada em comparação a países avançados, como ensina Lourdes Sola. De qualquer forma, a maior participação popular e adesão da elite comparativamente a momentos passados – alimentada pela crise econômica – contribuiu para melhores resultados em termos de democracia e cidadania, ainda que tenhamos um longo caminho a percorrer.

Agora assiste-se à pressão internacional por conta da questão ambiental, fruto de mudanças de crenças das sociedades avançadas, que impactam o mundo corporativo e financeiro, e assim, a agenda política mundial. Não aderir a essa agenda implicará isolamento de países, com custos econômicos e financeiros, como os decorrentes de retaliações comerciais, menor investimento estrangeiro e maior custo de captação de recursos externos.

A responsabilidade de governantes é maior quando a sociedade não valoriza a sustentabilidade, até porque recursos públicos precisam ser direcionados para esse fim. Isso é particularmente importante no Brasil, o sexto maior emissor de gases de efeito estufa, devido à falha do governo em proteger o meio ambiente: o desmatamento é responsável por algo como 40% da emissão de CO2, sendo que 60% do desmatamento na Amazônia ocorre em áreas públicas, segundo a Agroicone.

As crenças mundiais mudam rapidamente e isso exige reações tempestivas e concretas, com adesão do setor privado. Negar o problema e remar contra a maré implicará o isolamento e elevados custos para uma economia já tão frágil.

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Zeina Latif – Doutora em economia pela Universidade de São Paulo (USP) e economista-chefe da XP Investimentos. Trabalhou no Royal Bank of Scotland (RBS), ING, ABN-Amro Real e HSBC.
 

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