Hienas à solta. Por Josué Machado

HIENAS À SOLTA

POR JOSUÉ MACHADO

Rir de certas coisas pode indicar algum desequilíbrio do ser risonho

O título do artigo sobre educação foi o seguinte:

“Será que é tão engraçado assim rir de quem se atrasa para o ENEM?”

Estranho enunciado e estranho resultado.

Por que seria “[…] ENGRAÇADO ASSIM RIR […]”?

Rir DO RISO alheio? E mesmo que sem nenhuma graça?

Rir do riso ou do fato gerador do riso? Será muito sutil?

Esse título não indica que se ri da decepção dos retardatários, mas do riso de quem ri deles. Rir do riso. No caso, uma tolice sem sentido.

Porque, repetindo, não há sentido em apenas achar graça NO RISO de alguém.

Ainda mais de alguém que se diverte com o atraso do estudante que perdeu a hora do exame ou com a amargura de quem quer que seja.

Quem ri de algo assim deve ter perdido o senso de piedade.

Então, o melhor título para representar a ideia exposta pelo autor do texto seria algo como:

“POR QUE RIR DE QUEM SE ATRASA PARA O ENEM?”

Ou:

“QUAL É A GRAÇA NA DECEPÇÃO DE QUEM SE ATRASA PARA O ENEM?”

Ou, menos sutil, ainda como pergunta argumentativa:

“POR QUE HÁ TOLOS QUE RIEM DE QUEM SE ATRASA PARA O ENEM?”

O homem é um animal que ri, e são divertidos os risos incontroláveis, como já se viu em experimentos psicológicos ou filmetes que avaliam como o ato de rir pode ser contagioso.

Às vezes também se ri de certos risos que lembram o cacarejar de marrecos ou de patos cheios de amor ansiosos para atrair a fêmea incauta. (A fêmea é quase sempre incauta.)

Engraçado também pode ser o regougar da deselegante hiena, semelhante a uma gargalhada estúpida como pode ser a de quem ri da desventura do próximo.

A menos que tenha algo que ver com a risonha Irene, do Caetano Veloso:

“Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui
Eu não tenho nada, quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada
Quero ver Irene dar sua risada
Irene ri, Irene ri, Irene
Irene ri, Irene ri, Irene
Quero ver Irene dar sua risada”

Esquecendo a ridente Irene, convém lembrar que a língua alemã tem um substantivo específico para expressar a alegria pela desgraça alheia:
Schedenfreude, que significa a alegria ou o prazer do dano (Schaden = dano, prejuízo; Freude = alegria, prazer).

Mas há no país uma situação em que talvez todos tenhamos o direito de rir da desventura de alguém: se esse alguém figura entre os que roubam os recursos públicos — nossa bufunfa — e vão para a cadeia, como está acontecendo agora, coisa rara até há pouco.

Quando esses mãos-grandes das classes dirigentes perdem os privilégios e são ameaçados pela lei, podemos rir, embora saibamos que em geral eles logo depois voltarão a viver numa boa com o bendito fruto do que afanaram.

Então está claro que rir deles quando são apanhados não é a mesma coisa que rir da desgraça alheia.

E poucos são apanhados. Pena. Poderia acontecer mais.

É só dar uma olhada nas dúzias de abafadores, larápios, ladravazes,
ladroaços, milharefes, pilhantes, rapinantes, ratazanas e ventanistas que povoam o Congresso e largas adjacências. Começando pelos líderes.

Só não acontece mais porque a Justiça tarda e quase sempre falha.

Só rindo para não chorar.

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JOSUE 2Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.

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