No paraíso com Adão e Eva. Por Aylê-Salassié F. Quintão

NO PARAÍSO COM ADÃO E EVA

AYLÊ-SALASSIÊ QUINTÃO

O Brasil afasta-se, assim, e ainda mais, do convívio internacional. Destoa da legislação penal de mais de cem países e termina por institucionalizar o Brasil como o “paraíso da transgressão”, dando vida ao precedente criado por Adão e Eva…

Mortos e bruxas estão retornando nos próximos dias. São os personagens do Halloween batendo às portas. Quem não deve não teme. Sei não… Os credores do outro mundo vão encontrar o brasileiro inseguro, afogando-se em um mar de sargaços, povoado de gente do subterrâneo que, descaradamente, ameaça introduzir, na Justiça, o fim da prisão em 2ª. Instância; desfigurar a nova lei criminal; esvaziar o Conselho de Fiscalização das Atividades Financeiras (COAF); retaliar a reforma da Previdência; fatiar os lucros do petróleo; e, agora, sem se saber de onde veio, surge também um estranho derramamento de óleo cru nas praias do país: uma aparente sabotagem ao período que antecede às férias de fim de ano no Brasil.

O cidadão de boa-fé assiste angustiado a esse espetáculo de agressões à ética e à moralidade, promovido no âmbito da Política, da Justiça e dentro do próprio Governo. Para tumultuar ainda mais, o chefe do Executivo procura patogenicamente implodir o seu próprio partido (PSL), com riscos indigestos para a suposta coalizão (DEM e MDB) que lhe dá sustentação no Congresso. Feita a lambança, viaja tranquilo para a China e o Japão.

“Pátria amada, Brasil!…” Por coisas como essas, na hora de cantar o Hino Nacional, após o Brasil sagrar-se campeão mundial de voleibol em 2019, no Japão, com sua ajuda, o jogador Yoandy Leal, nascido em Cuba e naturalizado brasileiro há pouco mais de um ano, demonstrava um certo incômodo, ao ser surpreendido com a brasilidade da torcida nissei. O fato serve, no mínimo, a uma reflexão sobre o grau de compromisso que as pessoas estão dispostas a assumir com a Nação.

Particulariza-se aqui o processo de adaptação à naturalização. Como os direitos do naturalizado são assegurados no meio de tanta ingovernabilidade? Repentinamente, ele tem de se posicionar nessa selva macunaímica, que mistura civismo, ufanismo e “nacionalismo”, expressões de pertencimento nacional. As raízes identitárias do sujeito estão fincadas, entretanto, numa estrutura genética geracional, num solo e em uma história de origem. Cantar o Hino brasileiro é uma obrigação, não uma adesão.

…não sei se essa democracia, seja racial ou social, traz grandes contribuições para a configuração do perfil do brasileiro de hoje. Tenho até dúvidas se isso não afeta a constituição mental do povo. Será?

 

 

O curioso é que a pluralidade populacional, étnica e cultural da população brasileira reflete diferenças também confusas: gabirus e gigantes (do vôlei), brancos, negros, mulatos, branquelos. Em quadra, dá para perceber como os variados tipos físicos dos jogadores. Contrastam praticamente com os de todas as equipes com quem o Brasil disputa as partidas: iranianos, poloneses, russos, sérvios, africanos, holandeses. Isso fica bem explícito nas imagens, tomadas em plano geral, especialmente quando o confronto se dá com atletas nipônicos. “…Japonês é tudo igual…” satiriza-se.

Por não compreender os efeitos dessas diferenças, no Império, o governo brasileiro enviava agentes diplomáticos ao exterior, com a missão de atrair imigrantes para desencardir a população que emergia da democracia racial. São conhecidas as histórias do misto de diplomata e comerciante Sebastien-Nicholas Gachet, que encheu o Brasil de alemães, suíços e franceses; e, por outro lado, de agentes, traficantes, que macularam a história nacional com africanos capturados como escravos.

Por aqui, oferecem-se vários modelos de naturalizações ou de reconhecimento de direitos iguais. Na legislação, os portugueses foram os primeiros lembrados. Aqueles que casarem com brasileiro(a), e tiver filhos, adquirem-no facilmente. Foi o caso do ladrão inglês Ronald Biggs, do militante Cesare Battisti, do mafioso Tomaso Buschetta, de alguns nazistas, como Mengele, o conhecido “médico monstro”. Chega a ser cômico imaginar que Meneghetti, um criminoso condenado na Itália, teve, por aqui, acolhida, ganhando o simpático apelido de “o bom ladrão”. É o mesmo que “Roubo, mas faço”. O Snowden, aquele funcionário do Estado norte-americano que extraiu ardilosamente dados reservados do governo e os espalhou para o mundo, esteve para desembarcar no Brasil. Deixou, entretanto, aqui amigos, também estrangeiros que, sem a menor cerimônia, invadem computadores e telefones até de autoridades de Governo.

Em 20 anos, a Polícia Federal retirou das ruas no País 514 foragidos estrangeiros.

Portanto, não sei se essa democracia, seja racial ou social, traz grandes contribuições para a configuração do perfil do brasileiro de hoje. Tenho até dúvidas se isso não afeta a constituição mental do povo. Será? O Brasil foi sempre um país aberto aos imigrantes, e nunca teve mesmo uma etnia para dizer que é sua. Orgulhamo-nos dessa libertinagem, que inspira a falta de compromisso, apadrinhamentos e omissões convenientes. A balbúrdia é conduzida por pessoas de diferentes formações, origem e classe social.

Assim, no meio de tantas dúvidas e contradições deglutidas por falsas agendas públicas, é mesmo difícil definir onde se assentam as bases da identidade do povo brasileiro. Os governantes tratam a população como um rebanho. Os homens da toga preta, verdadeiros bruxos, tentam proteger quem tem dinheiro para pagar recursos processuais e, assim, adiar eternamente a prisão de amigos e correligionários. Bruxos ou fantasmas, alguns deles são vistos caminhando pelas ruas de Lisboa. O Brasil afasta-se, assim, e ainda mais, do convívio internacional. Destoa da legislação penal de mais de cem países e termina por institucionalizar o Brasil como o “paraíso da transgressão”, dando vida ao precedente criado por Adão e Eva.

Não se deve acreditar que isso não mexe com a cabeça do povo. É uma agressão explícita à inteligência da população. Daí a insegurança do Leal e outros, nativos mesmo, na hora de cantar o Hino Nacional. Os índios, legítimos proprietários das terras do Brasil, sentem dificuldade de engolir o Hino. Como nações e etnias distintas, tem seus próprios cantos. Enfim, o dia do mortos vai encontrar o brasileiro vivendo um dilema shakespeariano: “Ser ou não ser?”.

Na dúvida, Leal já está de contrato assinado para jogar na Itália.
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Aylê-Salassié F. Quintão*Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília

1 thought on “No paraíso com Adão e Eva. Por Aylê-Salassié F. Quintão

  1. Meu modesto “pitaco” nesse artigo irretocável:
    – “configuração do perfil do brasileiro de hoje”. Não há perfil. No máximo, um retrato falado…

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