Adeus, Philip Roth: morre o maior escritor americano. Por Paulo Paniagos

Adeus, Philip Roth:
morre o maior escritor americano

Por Paulo Paniagos

Artigo originalmente no Portal Metrópoles, edição de 23 de maio de 2018

Ele dizia na literatura que “envelhecer é um massacre”, mas a cada entrevista, ao ser confrontado com a ideia de morrer, Philip Roth afirmava estar se sentindo muito bem e feliz com a vida. A obra toda foi a ênfase desse conflito gritante e talvez o mais contundente que é preciso enfrentar: a luta da vida contra a morte e a recusa em aceitar de antemão que esta última sempre vence. Os fiéis leitores lastimaram quando ele anunciou a aposentadoria, em 2010, terminando a jornada com quatro pequenas obras não menos inquietantes do que a totalidade dos livros: 28 romances e um de contos, além de dois outros de não-ficção.

No meio dessa vastidão concentrada, Roth criou três alter egos. David Kepesh, um professor de literatura, aparece em três deles. “Philip Roth” (isso mesmo, ele fez de si um alter ego, o que levanta questões praticamente infinitas a respeito do alcance de um escritor, inclusive nas discussões a respeito da autoficção) comparece em cinco livros. Mas o mais duradouro foi Nathan Zuckerman, que aparece em nove romances, o primeiro deles chamado O Escritor Fantasma (1979) e, o último, Fantasma Sai de Cena (2007).

Roth, por Irving Penn

…Foi um choque, mesmo que o país estivesse vivendo anos de revolução sexual da contracultura. Acontece que a atenção despertada por esse livro poderia ter feito o escritor entrar numa rotina de produzir sempre sátiras…

O primeiro livro que publicou foi de contos, Adeus, Columbus (1959). Causou choque na comunidade judaica, porque os personagens recebiam tratamento humano e complexo, sem qualquer favorecimento. Na sequência, escreveu romances, o gênero predileto. Roth havia escrito dois livros bons, mas ainda insuficientes para chamar a atenção de todo mundo fora da comunidade religiosa-cultural, até que veio O Complexo de Portnoy (1969), em que o personagem, Alexander Portnoy, está no analista e relata a própria compulsão masturbatória.

Foi um choque, mesmo que o país estivesse vivendo anos de revolução sexual da contracultura. Acontece que a atenção despertada por esse livro poderia ter feito o escritor entrar numa rotina de produzir sempre sátiras, e o que ele fez foi aprofundar as discussões cada vez mais, apertando os parafusos de uma obra inquietante e desafiadora, a ponto de agora muita gente dizer que morreu o principal escritor norte-americano. Fato.

Roth, por Irving Penn

No centro das discussões que ele conseguiu desencadear, está a liberdade do indivíduo diante da força das circunstâncias. A limitação da contingência nunca vai impedir um personagem de continuar tentando…

Entre os prêmios, faltou o Nobel, por birra insensata da Academia sueca. Mas recebeu todos os outros importantes, inclusive um dos maiores reconhecimentos que se pode ter, a publicação da própria obra ainda em vida pela Library of America.

No centro das discussões que ele conseguiu desencadear, está a liberdade do indivíduo diante da força das circunstâncias. A limitação da contingência nunca vai impedir um personagem de continuar tentando. Em A Marca Humana (2000), um professor de literatura clássica negro, Coleman Silk, de pele muito branca, se disfarça de judeu. Ironicamente, sua queda vai se dar num episódio em que o politicamente correto dá as cartas e que envolve justamente suposto preconceito racial.

Roth é uma das expressões mais contundentes do individualismo moderno e, não tivesse se tornado romancista, poderia ser pensador polêmico e ensaísta, daqueles capazes de gerar intensos debates por onde passa e espalha a marca. Aliás, é sobre isso a obra inteira. A marca do conflito entre indivíduo e comunidade, a marca da distinção por pertencer a um povo sempre falado e apontado e perseguido, a marca humana que é possível deixar atrás de si.

Título do romance que trata exatamente dos vestígios que o humano é capaz de produzir, A Marca Humana tem um trecho bastante explicativo. “Nós deixamos uma marca, uma trilha, um vestígio”, diz uma personagem do livro, chamada Faunia. “Impureza, crueldade, maus-tratos, erros, excrementos, esperma — não tem jeito de não deixar. Não é uma questão de desobediência. Não tem nada a ver com graça nem salvação nem redenção. Está em todo mundo. Por dentro. Inerente. Definidora. A marca que está lá antes do seu sinal.”

Um dos mais destacados romances é O Teatro de Sabbath (1995), em que o personagem, Mickey Sabbath, entra numa espiral delirante de enlouquecimento e vida compulsiva, intensa, vibrante. Não é um personagem fácil ou empático, mas é literatura no mais alto grau. A coisa começa pela epígrafe, uma frase da peça A Tempestade, de Shakespeare: “A cada três pensamentos, um será dedicado ao meu túmulo”. E daí em diante é ladeira abaixo, acelerado.

Sabbath vai começar a pensar em suicídio como saída, se não honrosa, pelo menos justificável. O discurso racional para falar do processo de loucura de um ser humano que não se guia pelos valores vigentes. “A lei da vida: flutuação. Para cada ideia, uma contraideia, para cada vontade, uma contravontade. Não admira que ou a gente fica louco e morre, ou resolve desaparecer.” É importante não confundir literatura e vida real. Deixe o desaparecimento, a loucura, deixe inclusive a morte para a literatura e cuide da vida. Todas as emoções são forjadas, um embuste, até Sabbath não saber mais definir a linha que separa as encenações daquilo que realmente sente.

Sim, é isto mesmo, quando se pensa bem: morreu o maior escritor norte-americano.

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Paulo Paniago é mestre em literatura e doutor em comunicação. Atua como professor de comunicação social na Universidade de Brasília.

 

 

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