A VERDADE SAINDO DO POÇO

"A Verdade saindo do poço", Jean-Léon Gérôme, 1896

Mentiras, meias-verdades & omissões deliberadas. Por Alexandre H. Santos

MENTIRAS, MEIAS-VERDADES & OMISSÕES DELIBERADAS

ALEXANDRE HENRIQUE SANTOS

…se existe um potente antídoto para nos imunizar contra a pandemia de fake news, ele se chama educação. Quanto mais elevado o grau de escolaridade da pessoa, menor o risco de ela se deixar levar de forma dócil e mecânica pelo que lê, ouve e vê. Por mais sedutoras que sejam as aparências…

“Sem educação não há solução”.

Adágio pedagógico

Uma excelente ilustração para a tantas vezes camaleônica relação entre verdade e mentira é o conhecido quadro A verdade saindo do poço (1896), do pintor e escultor francês Jean-Léon Gérôme. Vale relembrar a fábula: as duas se encontram ao lado de um poço. A Mentira diz que a água está fresca, agradável, e convida a Verdade para um banho. Naturalmente, a Verdade desconfia; mas prova com o pé e confirma. Ambas se despem, entram n’água e desfrutam do lazer. Tão logo a Verdade se distrai, a Mentira corre, rouba suas roupas e foge disfarçada por aí…

A velha parábola continua atualíssima e nos ajuda a entender a regra de ouro da criação de notícias falsas: jamais utilize a mentira sozinha. Misture os dois ingredientes. De preferência, agregue várias doses de verdade antes de uma dose de mentira. A fórmula é terrivelmente eficaz; e a mentira será aceita, sem questionamentos, como se a verdade fosse!

Diariamente, na pressa com que recebemos informações e as passamos adiante, não é fácil separar o que parece ser do que realmente é. Sem dar-nos conta e com as melhores intenções, os leitores e eu, com certeza, já compartilhamos notícias falsas. E posto que ninguém está isento de reincidir no deslize, cabe refletir sobre o que poderia nos proteger e estancar o fluxo dos embustes.

Bem, se existe um potente antídoto para nos imunizar contra a pandemia de fake news, ele se chama educação. Quanto mais elevado o grau de escolaridade da pessoa, menor o risco de ela se deixar levar de forma dócil e mecânica pelo que lê, ouve e vê. Por mais sedutoras que sejam as aparências. De modo que o mero pensar diante de uma informação, em vez de engoli-la bovinamente, pode coibir grande parte dessa contaminação.

As notícias falsas utilizam os mesmos modelos das falácias clássicas. Ou seja, são elaboradas de forma técnica, e é com técnica que elas podem ser desconstruídas e desmascaradas. As mentiras não costumam resistir às perguntas básicas que aprendemos a fazer nos cursos introdutórios de lógica formal. Simples assim. Daí que a exclusão de filosofia – entendida aqui como exercício do pensamento crítico – dos currículos escolares resulta em um gigantesco desserviço à nossa inteligência e a comunidade. Só a fragilidade do ensino explica o alarmante índice de analfabetismo funcional que há entre nós. Dói admitir, mas trata-se de fato comprovado: parcela expressiva dos universitários brasileiros é incapaz de interpretar um texto que acabou de ler!

Voltemos à fábula. Se a Mentira se camufla com as vestes da Verdade, como distinguir uma da outra? Pois sim, o imbróglio nos impõe a laboriosa tarefa de pensar. E cá pra nós, pensar no Brasil de hoje parece um bem extremamente escasso. A Seita do Obscurantismo quer nos fazer acreditar que raciocinar é uma ação má, desnecessária, inútil e até perigosa. Talvez seja parte do plano da conspiração chinesa para dominar o planeta; ou coisa patrocinada pela oposição comunista. Quem sabe ainda, um item da estratégia de Biden para nos roubar a Amazônia; ou até mera birra de intelectuais e jornalistas vagabundos, os inimigos costumazes da democracia!

Ninguém nasce pensando. Se há quem nos ensine, a gente aprende a pensar. Exercitar os neurônios, pô-los para trabalhar, isto é, observar, perguntar, questionar, refletir são atividades essenciais em qualquer processo que mereça ser chamado de pedagógico. E posto que a educação, já foi dito, constitui o anticorpo fundamental na luta contra a ignorância, o negacionismo e as fake news, podemos imaginar o tamanho do desastre causado pela ausência dela. Fica claro o porquê dos analfabetos e pouco letrados serem as primeiras vítimas das campanhas dos gabinetes do ódio – tanto faz se da direita ou da esquerda. Quem as planeja e executa comete um crime cruel. Indivíduos, famílias, empresas, comunidades, nações e países são penalizados com tristeza e sofrimento causados pelas mentiras, meias-verdades e omissões deliberadas.

Resulta impossível avaliar o dano causado pela notícia falsa que foi absorvida e metabolizada por um grande contingente da população. Equivale à metáfora de esvaziar no alto do arranha-céu o travesseiro de plumas, em dia de vento forte, e depois descer ao térreo para juntá-las de novo. Uma vez caluniadas, as reputações passam a viver com uma sombra sobre si; nunca retornam ao que eram antes. Portanto, participe ativamente do combate às fake news: se não tem como evitar que elas cheguem até você; trate de que elas parem em você!

Seja como for, convém meditar sobre o que Ortega y Gasset sugeria aos jovens professores: “Toda vez que vocês ensinarem algo a alguém, ensinem também a duvidarem do que vocês ensinaram”. A recomendação em nada destrata a autoridade dos educadores. Ao contrário, representa um convite para o treino do senso crítico dos aprendizes. A dúvida em si não tem nada de mau; conduzida de maneira equilibrada e perspicaz é um utilíssimo instrumento do saber. (Embora eu não cultive a mais remota esperança de que o gado concorde com essa perspectiva!) Quem ama a verdade sabe que a ignorância é uma prisão; e a dúvida ensina a libertar.

Dispomos duas versões para o final da célebre parábola. Na primeira, a Verdade, que se recusa a usar as roupas da Mentira, sai desnuda, tentando sem êxito reaver sua vestimenta. A maioria das pessoas, que não gosta de ver a Verdade nua, a trata com desprezo e raiva. Deprimida, ela retorna ao poço e nele desaparece…

A segunda versão narra a Verdade saindo do poço, se dando conta da falta das suas roupas e ficando furiosa. Mas pronto se acalma; e altiva, corajosa, decide mostrar-se ao mundo como ao mundo veio: nua e orgulhosa da sua nudez. Essa variante coincide com a dificílima, mas crescente, busca contemporânea da transparência. Transparência de todas as formas, conteúdos, gêneros, números, graus, sentidos, tempos e espaços. Uma utopia? Com lentidão, com avanços e recuos, aos trancos e barrancos, nos dirigimos para uma sociedade na qual só a mentira terá o que esconder.

O final da parábola pertence a você. Não há escolha certa nem errada; mas sim responsabilidade por aquilo que se escolhe. Sua decisão revelará, senão tudo, muito do significado e do propósito que você dá a sua vida.

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Foto: @catherinekrulik

*Alexandre Henrique Santos – é sociólogo, consultor de empresas, terapeuta e coach. Atuou mais de 30 anos em e para grandes corporações na área do desenvolvimento humano. Mora em Madri e dá palestras, consultorias e workshops presenciais e à distância na Península Ibérica e na América Latina. É meditante, vegano, ecologista, participa de trabalhos voluntários e campanhas de solidariedade. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes.

Contato: alex@ndre.com.br

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