As borboletas amarelas de Macondo. Por Antonio Contente

…  — Macondo! Macondo! Estamos em Macondo!  Rápido retornei para onde ele estava e, vendo-o com o corpo absolutamente coberto por uma nuvem de borboletas amarelas, estanquei…

As borboletas amarelas de Macondo

Eu sempre achei que as cristalinas águas do Igarapé do Chipucu, que ainda hoje corre do âmago da floresta amazônica, perto da cidade de Mocajuba, no Pará, para desaguar no rio Tocantins, vinham do infinito. De um lugar que eu mesmo batizei como Cachoeira do Impossível.  Por ali, menino nos meados dos anos 40 e princípios dos 50, me perdi e me encontrei em tantos lances de suaves entregas ante o real colorido dos peixinhos. Maravilhosas, moventes joias de um baú de tesouros que minhas mãos bem tentavam, mas nunca conseguiam capturar. Tudo sob a tênue luz do sol tolhida pelo entrelaçar, muito acima, dos galhos na selva de copas altas.

 O pequeno curso d’água, nesta minha vida inesperadamente já tão longa, desliza no melhor de tudo que lembro. Nem posso contar as vezes em que nele ainda hoje continuo a flutuar em sonhos para, nas madrugadas de saudades mais fundas, acordar sentindo no quarto o aroma das folhas secas e das flores. Banhadas pela umidade das tantas chuvas que, por ali, os céus despejam.

Assim foi que, no final dos anos 60, já jornalista em São Paulo, estando em Belém a me preparar para nova visita ao igarapé da meninice, encontrei dois amigos na capital do Pará, ambos ali nascidos e de férias, uma vez que a vida, por circunstâncias de trabalho, os levara a morar fora do país: ele, Olímpio Souza, diplomata, em Washington; ela, Sandra Almeida, cineasta, em Paris, onde atuava como assistente de produção na equipe do diretor Claude Chabrol.

Acabou sendo inevitável que, no encontro, eu acabasse convidando a dupla para ir comigo ao meu chão da infância. Que poderia, no caso do rapaz, fornecer a ele elementos para um trabalho que vinha fazendo sobre os rios amazônicos; e, no que se referia à moça, abrir perspectivas de boas tomadas para um documentário, em filme, mostrando lances da floresta tropical que os europeus tanto apreciam.

Viajamos num navio gaiola de casco de ferro construído, nos anos 30, nos estaleiros de Southampton, Inglaterra. Saímos de Belém embarcando no lendário Porto do Sal, cercado de construções do século XVII e fantasmas, numa noite de lua escandalosamente cheia. Evento que, bem depois, nos fez entrar na imensa Baía do Arrozal, formada por águas do rio Amazonas que correm em busca do mar, cobertas por luar de esparramada quietude. Sem dúvida, conspiração dos deuses trabalhando a nosso favor, uma vez que o cenário não poderia ser mais deslumbrante. Pingos, lascas de prata sobre as cristas das ondas cavadas por brisas leves; e, lá longe, o risco escuro das indecifráveis copas de árvores imensas, marcando pontos do horizonte. E delas vinha o aroma de ar lavado, limpo, de pétalas pendidas; de frutos processando o calor do sol que o dia sobre eles depositara.

Só na tarde do dia seguinte, após o almoço, avistamos, sobre a ladeira que a sustenta desde 1854, a cidadezinha de Mocajuba. O resto aconteceu rápido, pois, em poucas horas, já dispúnhamos de um barquinho alugado que nos levaria aos pontos que eu queria mostrar aos visitantes. Marcamos a primeira excursão para o dia seguinte, cedo.

Fomos apenas nós três, eu no leme da canoa. Manobrei com os resquícios das habilidades d’antanho, exatamente na direção da foz do Igarapé do Chipucu a se lançar no grande rio. Avisara aos visitantes que, no local, encontrariam uma espécie de síntese de todos os encantos da área. Imediatamente enumerei as águas tomadas pelo percorrer de peixinhos de variadas cores, orquídeas enormes pendentes de forquilhas de árvores geradas no anteceder de todas as memórias, além de pequenas trilhas entre troncos; que, aliás, mais bem apresentados seriam se afirmasse serem pilastras da nave de uma imensa catedral verde.

Não demorou e Olímpio, o diplomata, sentado num tronco caído nas margens do igarapé fazia anotações, enquanto a cineasta, com sua filmadora portátil, tentava captar as sutis manobras da luz do sol que, com as copas se fechando acima, formavam, no ar, réstias de dourado leve, como a cor de trigal em festa. Afastei-me para catar minhas próprias lembranças sob velha ponte de tantas travessias no passado, e assim ficamos, todos tomados pela indesmentível magia. De repente, porém, ouço um rumor. Era Olímpio, a gritar:

— Macondo! Macondo! Estamos em Macondo!

Rápido retornei para onde ele estava e, vendo-o com o corpo absolutamente coberto por uma nuvem de borboletas amarelas, estanquei. Ele me olha e diz:

— Sou Maurício Babilônia, o personagem do livro.

Sandra, que já então filmava tudo, sequer se preocupou em saber o que estava havendo. Eu, parado fiquei e estou contando esta história agora porque ela ocorreu há mais de 50 anos, quando foi lançado o livro “Cem Anos de Solidão”, que meu amigo lera nos Estados Unidos e ainda não havia chegado ao Brasil. Macondo, nome que ouvia então pela primeira vez, era o lugarejo repleto de magias onde se passa o romance de Gabriel Garcia Marques. E horas depois, ao sair do lugar onde segue correndo o igarapé, certamente algo havia mudado dentro de cada um de nós. Sandra e Olímpio, infelizmente, já morreram. Eu continuo, cada vez mais, coberto, de vez em quando, pelas borboletas amarelas que, na obra gabrieliana, sempre cercavam o personagem Maurício Babilônia. Até que, em certo instante, elas me tomem e me ergam. Levando-me para algum lugar sem solidões e sem saudades.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTEESTREIA COMO COLABORADOR AQUI NO CHUMBO GORDO!

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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2 thoughts on “As borboletas amarelas de Macondo. Por Antonio Contente

  1. Um dos textos mais lindos que já li…
    Poético, retrata tão bem o momento, a gente parece estar lá, assistindo à cena. Fiquei com ciúmes do diplomata. Talvez eu ficasse temerosa em ser “atacada” por uma panapana de borboletas amarelas, mas a imagem é tão simbólica, é como se as amarelinhas estivessem participando de uma espécie de rito de passagem…

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