velhos tempos - vigarista

Em nome dos velhos tempos. Por Antonio Contente

Imediatamente chamei o maitre, para pagar o prejuízo. Mas ele limitou-se a sorrir:  — Ora, esqueça. Em nome dos velhos tempos…

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Sempre que vou a São Paulo frequento um notório restaurante no Bixiga porque, além da comida esplêndida, sou amigo dos donos há um monte de tempo. Como sei que o local, em determinadas horas, dá muito Ibope, costumo chegar antes dos momentos de pique para não ter que esperar lugar. Assim foi há alguns dias e eu ainda levava à boca a primeira azeitona do couvert, quando um sujeito, elegantemente trajado, terno impecável, se postou em minha frente e pediu licença.

         — Pois não – respondi

         — Será que eu posso? – Ele apontou para uma das cadeiras vazias.

         — Claro, leve – concordei – não estou esperando ninguém.

         — Não – o camarada se arma com o melhor sorriso – eu não quero levar. Desejo saber se o amigo permite.

Antes que eu respondesse, aponta:

         — Já tem gente paca esperando, e não há lugar. Como você está sozinho, pensei…

Na verdade, eu pretendia recusar, até porque há momentos, e eles andam sendo cada vez mais frequentes para mim, em que as pessoas desejam ficar sozinhas, não estão a fim de bater papo, principalmente com um desconhecido.

         — OK – concordei – faz favor.

Imediatamente o cara senta e, imediatamente, estala os dedos para o garçon, a quem pede um uísque.

         — Desejo um scotch 18 anos – frisa – o que você tem?

Ouvindo as marcas, optou por um rótulo azul, cuja dose custava quase 100 paus.

         — Se vou beber – me olha – tem que ser desses. Do contrário, no dia seguinte, a cabeça só falta sair do lugar.

Eu ia fazer uma observação qualquer, só que o camarada, pegando uma das “minhas” azeitonas, murmura:

         — Você… Você…

         — O que? – Tento abreviar a indecisão.

         — Será que nós dois…

         — Não, não – me adianto – tenho certeza que nunca nos vimos. Além do mais, faz vários anos que moro em Campinas. Você acaso anda por lá?

         — Absolutamente – o sujeito sorri – nasci e vivo aqui faz séculos. Há dez anos fiquei uma longa temporada em Nova Iorque. Depois, Paris. De lá para cá minha vida é entre o centro, este amado Bixiga e o Cambuci. Mas me diga…

         — O que?

         — Você não me é estranho. Juro por Deus.

         — É porque sou uma criatura comum, de cara comum. Como há milhares de pessoas que nem eu numa cidade imensa como São Paulo, você, certamente, está me confundindo com uma delas.

         — Pode ser. Mas você nunca fez TV, nunca trabalhou em cinema? Este restaurante é frequentado por muita gente que faz isso.

         — Negativo. Você pode ter certeza.

Nessa de papo furado e até chegar meu franciscano prato, o sujeito derrubou nada menos de três doses de quase cem paus cada uma. Em determinado instante, levantou dizendo que ia ao toalete.

 No duro no duro, como sou meio lerdo para essas coisas, só percebi que o elegante camarada não voltaria ao chegar a sobremesa; e, apesar do razoável prejuízo que comecei a contabilizar, achei ótimo ter me livrado do chato. Todavia, ao chamar a conta, tive uma grande surpresa, quando o garçon me informou:

         — Está paga.

         — Como paga? – Olhei para um lado e outro, na tentativa de avistar algum amigo.

         — Aquele senhor – vem a informação.

         — Que senhor?

         — O que esteve na sua mesa. Antes de sair, foi ao caixa e pagou.

         — Tudo?

         — Tudo.

Meio desconcertado por ter julgado tão mal a figura, fui embora, numa boa. Até que, dias depois, voltando ao restaurante, sentei, tranquilo, esperando a repetição do milagre. Só que não pintou, pois, ao perguntar quanto devia, o garçon trouxe a dolorosa.

         — Puxa vida – lamentei – que pena que o camarada que sentou aqui na semana passada não tenha dado as caras.

         — Bom – o funcionário do restaurante sorriu – para o senhor talvez tenha sido bom. Mas pra nós…

         — Pra vocês o que?

         — É que o cheque que ele nos deu não tinha fundos. E nós nem trabalhamos mais com isso, só com cartões. Mas como o senhor frequenta a casa desde quando trabalhava na Folha de S. Paulo, e ele estava na sua mesa, abrimos uma exceção…

Imediatamente chamei o maitre, para pagar o prejuízo. Mas ele limitou-se a sorrir:

         — Ora, esqueça. Em nome dos velhos tempos…

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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3 thoughts on “Em nome dos velhos tempos. Por Antonio Contente

  1. Você sabe, ja falei uma pá de vezes, que eu perdoo, e até torço um pouco pro seu ladrão de galinha. Mas esse grande filho…. que fez de você comparsa, Mané, só não esconjuro de vez porque, justiça seja feita, o cara era bom no ofício.

  2. Meu caro amigo, pensei que ué a morte do Carlos Brickmann, brilhante jornalista, traria o término do blog.
    Graças ao Céus não vamos ficar privados de tuas magníficas recordações, com a tua deliciosa forma de contar.
    Avante,
    Abração

    1. oi, amigo!!! Farei de tudo para manter esse nosso espaço aqui, esse jardim de pensamento, alegria e informação.
      Obrigada por estar aqui com a gente.
      Beijao, Feliz 2023!
      Marli Gonçalves – editora do CG

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