ladrãozinho

Apenas um ladrãozinho. Por Antonio Contente

… por todos os meios e modos, era, simplesmente, ladrão. Não, não se tratava de presidente da República, ex-presidente, governador, prefeito, deputado, senador, vereador, ministro ou de político de algum outro matiz; mas era ladrão…

ladrãozinho

São Paulo, segunda metade dos anos 50 do século passado, e ali morava o jovem Melo que era, tão somente, ladrão. Isso, dito assim de pronto, à primeira vista pode até parecer chocante; mas é que Melo, por todos os meios e modos, era, simplesmente, ladrão. Não, não se tratava de presidente da República, ex-presidente, governador, prefeito, deputado, senador, vereador, ministro ou de político de algum outro matiz; mas era ladrão. Vivia de pequenos golpes, praticava de vez em quando um assaltinho e, como agia sozinho e com rara habilidade, nunca sofreu nenhuma passagem pela polícia. Talvez tenha sido num sujeito como ele, sobre o qual jogaram as boas tintas da ficção, que os escritores Maurice Leblanc e E. W. Hornung se inspiraram para criar os personagens que lhes deram fama e fortuna. Refiro-me, claro, a Arsène Lupin, no caso do primeiro ficcionista, e Raffles, no caso do segundo. Ambos personagens literários apresentados como ladrões solitários, charmosos, bem vestidos e agindo com  precisão. Pois o nosso Melo, sem as cores que se derramam sobre romances, era apenas um competente vigarista, lunfa, meliante, larápio, amigo-do-alheio, descuidista nacional.  Apesar da simplicidade vivia bem, pois possuía casa, carro, boas roupas.

Para os pouquíssimos conhecidos, Melo dizia trabalhar como vendedor. O que vendia? Nunca ninguém perguntou. E ele, também, nunca precisou dizer. Nessas condições nosso personagem, na área em que de fato atuava, era um dos mais bem sucedidos da capital paulista naqueles tempos.

Teria vivido assim para sempre, calmo, tranquilo como surrupiador, se não tivesse conhecido Carla. Foi um encontro casual, na rua, em dia de chuva. Ele ofereceu carona, em plena avenida São João, ela aceitou. Ao deixá-la em casa, na Vila Mariana, estavam praticamente namorando.

Depois, quando menos esperava, Melo, que era quase como o bíblico Bom Ladrão, se surpreende apaixonado. Só que havia certos detalhes. O mais importante: Carla era filha de uma família pobre, porém honestíssima, religiosa de Bíblias em cabeceiras, na qual todos trabalhavam. Ao conhecer o talvez futuro sogro, este tratou logo de perguntar ao nosso herói como ganhava a vida. A resposta saiu com segurança: em vendas. O velhote observou quando ainda nem se sonhava com Shoppings Centers:

        — Muito bom. Hoje o que dá dinheiro são boas vendas.

Com o passar do tempo, começa a se formar um draminha na cabeça de Melo. É que queria casar, mas como dizer à futura esposa que era, pura e simplesmente, ladrão? Isso se agravou quando Carla insinuou sobre a necessidade do noivado:

        — Será que algum dia a gente casa? Gosto tanto de você…

        — Mas você me conhece tão pouco… – Ele tenta sair pela tangente.

        — Nada me interessa. Se você fosse um vigarista gostaria de você do mesmo jeito.

Melo, ouvindo, empalidece. Saberia ela algo? Tateou aqui, tateou ali e descobriu que não. Daí que resolve: revelaria à mulher amada sua estranha profissão.

E para isso nem houve grandes preparos. Estavam uma tarde curtindo cervejinhas em um bar no Bixiga e Melo se abre. Conta, tim-tim por tim-tim, sua vida. Que aplicava pequenos golpes aqui e ali e tinha rara habilidade para surrupiar carteiras. Murmurou:

        — Certa vez roubei uma de um cara com cargo na Assembleia Legislativa, camarada altamente graduado, acho até que era deputado; o que consegui de grana daria para pagar nossas despesas de mais de três meses…

Só então olha nos olhos dela e indaga se ainda queria casar com ele.

        — Quero – ela responde – mas agora vamos aguardar um pouco. Amanhã a gente conversa.

Vinte e quatro horas depois estavam no restaurante Gigetto, que florescia naquele tempo. Carla finca os cotovelos na mesa:

        — Sabe, Melo, você ficar fazendo o que faz não está certo.

        — Eu sei – ele concorda – mas até o Robin Hood, tremendo ladrão, não virou herói de romances, de filmes?

        — Você não está me entendendo – ela fala em voz baixa – esse negócio de ser ladrão mixuruca é bobagem, meu amor; com o know-how que você tem o negócio é aplicar um grande golpe.

        — Como assim?

        — Você vai assaltar o banco onde eu trabalho. Conheço aquilo como a palma da minha mão, temos tudo para aplicar um roubaço de mestre que ninguém descobrirá.

O rapaz fica subitamente tenso. Permanece calado cerca de minuto e meio, ao fim do que levanta. Apóia-se à mesa para falar quase cuspindo no nariz de Carla:

        — Você não gosta de mim porque sou pobre. Você queria um gângster, um político que mete a mão no erário, um corrupto do colarinho branco. Você é uma interesseira, Carla.

Apruma-se:

        — Fique sabendo que sou um ladrão honesto, ouviu? Muito honesto!

Saiu então para a rua, em passos duros. Naquela noite, com tanta raiva estava que, pela primeira vez, entrou num remoto quintal em discreta e arborizada rua do bairro do Paraíso. De onde surrupiou duas galinhas. E um galo.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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