Santa Fé

A maravilhosa Santa Fé. Por Antônio Contente

…Santa Fé é, apenas, a designação de  cidadezinha plantada às margens de um dos rios amazônicos. Apesar de certamente não ser um dos lugares mais bonitos do mundo, vale afirmar que possui inegável charme. À sua frente, com disse, passa um belo curso d’água, meigo, cristalino…

barco - santa fé- amazônia

Esta crônica, ao contrário do que o nome pode sugerir, não trata de assuntos religiosos. Santa Fé é, apenas, a designação de  cidadezinha plantada às margens de um dos rios amazônicos. Apesar de certamente não ser um dos lugares mais bonitos do mundo, vale afirmar que possui inegável charme. À sua frente, com disse, passa um belo curso d’água, meigo, cristalino. Na rua principal, sobre um alto barranco, há verdadeiro colar de mangueiras imensas, além de coqueiros, esparsos. Santa Fé, além de tudo, possui, ao fundo das casas, todas modestas, belíssimos quintais. Entre cercados de estacas vicejam abacateiros imensos, goiabeiras, abieiros, sapotilheiras, açaizeiros sem conta. À tarde, invariavelmente, a garotada faz ponto no trapiche. Dali pulam para o rio, dali pescam, dali olham as embarcações que passam. Tudo envolvido por ar de festa.

Há cinquenta anos ou mais Santa Fé não era maior ou menor do que é hoje. A população, neste tempo todo, não cresceu nem diminuiu: lá estão, nos papeis, registrados, os mesmos 2.000 habitantes. De resto, na ultima vez em que lá estive, chegando de barco pois não há estrada, logo percebi que nada mudara. As casas eram absolutamente as mesmas, idem a igreja, idem o predinho da Prefeitura, a residência dos padres, a pequena farmácia, o bar diante da praça, lugar das cervejas aos domingos, após a missa. Até um sobrado, o único, de janelas largas que sempre me encantaram, permanecia com a mesma cor, rósea; os arcos dos peitoris pintados de azul forte.

Andando pelas ruas naveguei, emocionado, sobre, digamos assim, doces lembranças. Certo cajueiro, por exemplo, que sempre tive vontade de escalar, ali estava, solene, a balançar à fresca da tarde. Santo Deus, pensei, esse monte de passarinhos que cantam; seriam os mesmos do passado? Pelo envolvimento do que eu sentia, deveriam ser…

No começou da noite vou à casa de um senhor, merceeiro, que sempre foi o melhor papo de Santa Fé. Com redobrado espanto verifico que seu Borges, também, quase não sofrera a ação do tempo. Nas têmporas, é certo, estavam vários fios brancos. Mas o rosto permanecia crivado de jovialidade eterna. Ao vê-lo, a sensação de que eu voltara no tempo bateu. Me senti no cenário de um conto de Ray Bradbury.

Inevitavelmente o assunto tinha que ser aquele. Começo a falar sobre a perene sensação do imutável, e me derramo em  meigas observações.

         — Santa Fé – murmuro – de fato parou no tempo.

         — Bem – Borges pigarreia – as pessoas de fora sempre dizem isso.

         — Veja a sua casa – olho em volta – tudo está exatamente como quando eu era bem mais novo.

De fato ali, entre as quatro paredes, a sensação de passado se tornara, de repente, quase contundente. Até um vidro com compota de murici, e bojuda garrafa com um licor vermelho se achavam exatamente sobre um mesmo móvel, espécie de cristaleira.  Ao sentir o cheiro do café que coavam, suspirei um “tudo como nos velhos tempos”.

Daí em diante começo a crivar Borges com perguntas. Lembro de um padre que vivia brigando com um professor do grupo escolar, e sou informando que as brigas continuavam. Lá pelas tantas, olho nos olhos do meu amigo e sopro:

         — Ao sair daqui terei a impressão de estar voltando para o futuro.

         — Você acha mesmo?

         — Claro. Não há nada, em Santa Fé, que denuncie que a gente está no Brasil. Onde as coisas evoluem ou involuem. Aqui, não saíram do lugar.

Há um breve silêncio. Então, seu Borges vagueia:

         — Talvez nem tudo esteja no mesmo lugar como você pensa.

         — Como não? – Ergo as sobrancelhas.

         — Veja – ele junta as mãos – em 1960, para comandar os mesmos 2.000 habitantes do município, a Prefeitura tinha, além do prefeito, dez empregados.

         — E hoje? – Ergo um pouco a voz.

         — Bem, hoje, são nada menos de 50.

Diante daquilo, levanto da cadeira, coço a barba. O merceeiro segue:

         — E temos, até, super-salários, nada menos de cinco marajás.

         — Marajás? – Arregalo os olhos – E quanto eles ganham?

         — Dos 50 funcionários – Borges segue – 45 recebem meio salário mínimo por mês.

         — E os marajás?

         — Ah – meu amigo ergue os braços – os marajás, cupinchas do prefeito, recebem um mínimo inteiro…

Sem dizer mais nada, pouco depois saio para a rua. E fui tomar uma cerveja no buteco perto da matriz. A fim de resfriar a bebida, ali estava a velha geladeira. Movida a querosene.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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4 thoughts on “A maravilhosa Santa Fé. Por Antônio Contente

  1. Delícia de conto, Antonio Contente. Santa Fé é um paraíso. Tipo do lugar ” Pare a Máquina Que Eu Quero Descer”…sair deste sistema louco, consumista, agitado.
    Apesar do empreguem…

  2. O Jornalista, Contista, Escritor e Cronista Antônio Contente é, indiscutivelmente, o melhor exemplo da Grande Tradição do Jornalismo Mundial do Jornalista autor de Crônicas do Cotidiano, que nos brinda com suas saborosas observações e interpretações dos acontecimentos os mais variados, encantando-nos com sua prosa poética!

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