Berlim

…Filmes brasileiros em Berlim, além de “As Miçangas”, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor, na competição internacional de curtas-metragens: na mostra paralela Panorama, “Propriedade”, de Daniel Bandeira, sobre a disparidade das classes sociais no Brasil; na mostra Fórum, “O Estranho”…

Hoje tomo um trem noturno para Berlim, onde acompanharei as projeções dos principais filmes do 73º Festival Internacional de Cinema. Em decorrência da crise sanitária, meu último festival foi o de 2020, quando o Urso de Ouro foi para o filme “Não há nenhum mal ou O diabo não existe”, do cineasta Mohammade Rasoulot, impedido pelas autoridades iranianas de ir a Berlim para receber seu prêmio. Preso logo depois e condenado a não fazer mais filmes, foi libertado faz alguns dias, por três meses, por problemas de saúde, mantido, porém, em prisão domiciliar.

Foi sua irmã quem recebeu em seu nome o Urso de Ouro, bem-merecido. O tema do filme era a pena de morte, que começava a ser aplicada no Irã também a jovens por discordância política. É lembrando esse clima de repressão, agravado nestes três anos, e revendo na imprensa internacional suas fotos, que redijo esta abertura da Berlinale, cuja direção vem mantendo a preocupação social, política e com os direitos humanos ligada diretamente às novas criações da sétima arte.

Sociólogo e cineasta, Mohammade já havia sido preso em 2010 junto com outro cineasta iraniano, Jafar Panahi, por “atos de propaganda hostil contra a República Islâmica do Irã” como dizia a condenação. Ambos realizavam juntos o filme “Os manuscritos não queimam” apresentado em Cannes em 2013, onde recebeu o prêmio Um certo Olhar. Mohammade foi condenado a um ano de prisão e Jafar a seis anos.

Em julho do ano passado, Mohammade foi novamente preso por ter criticado a repressão policial contra uma manifestação e Jafar acabou sendo preso por ter pedido explicações sobre as razões da prisão de Mohammade. Jafar é um dos mais importantes cineastas iranianos. Já foi premiado com o Leão de Ouro, de Veneza, em 2000, pelo filme “O círculo”, e premiado com o Urso de Ouro de Berlim, em 2015, pelo filme “Taxi Teerã”, mais o prêmio de melhor roteiro em Cannes, 2018, pelo filme “Três rostos”. Panahi, que foi libertado há duas semanas, depois de oito meses de prisão, ganhou também o prêmio Um certo olhar, do Festival de Cannes com o filme “Sangue e ouro”.

No meu texto publicado em 2020, logo após o Festival de Berlim, já alertava para o que efetivamente ocorreu: “teremos de nos habituar a uma nova realidade com as atuais dificuldades criadas aos produtores de filmes (o governo Bolsonaro fazia apenas um ano!), haverá a partir de agora, uma diminuição de títulos brasileiros nos festivais… Os filmes focando histórias LGBTQIA+ terão ainda maiores dificuldades para realização no Brasil, dadas a homofobia e a transfobia declaradas do presidente Bolsonaro e dos pastores evangélicos”.

Passaram-se três anos de obscurantismo cultural, não há filme de longa metragem brasileiro selecionado para a competição internacional e o filme curta metragem selecionado, “As Miçangas”, não recebeu nenhum apoio para ser feito e nem para ser representado no Festival de Berlim. Mesmo assim, com todos os ventos e marés contrários, foram selecionados filmes brasileiros em diversas mostras paralelas, relacionados a seguir. Com o restabelecimento do Ministério da Cultura, agora dirigido por Margareth Menezes, atriz e cantora, espera-se ser recriado o clima de apoio econômico e incentivo para a cinematografia brasileira, mas que só se poderá sentir dentro de dois anos, dado o tempo necessário para a produção de um filme.

Entretanto, a recuperação do cinema nacional não são favas contadas. Nem toda crítica entendeu e comparou o Brasil à perseguição aplicada pelo governo teocrático islamita iraniano ao cinema. Por isso, vale a pena repetir: “a lição que se pode tirar da experiência do cineasta Mohammad e Jafar é a de que certas semelhanças do Irã com o Brasil devem ser consideradas com atenção. O Irã é um Estado religioso e são os mulás, o clero iraniano, que controlam o país. O próprio poder político deve obediência ao aiatolá. Ou seja, o chamado poder divino dirige o poder político”.

Em síntese, o Irã é uma teocracia. Felizmente, o bolsonarismo evangélico adepto de teorias conspiracionistas e negacionista foi derrotado e não irá continuar a conquistar sorrateiramente o controle temporal e político no Brasil, à maneira dos chefes religiosos muçulmanos iranianos. Porém, não se pode dizer ter passado totalmente o perigo de se ir criando uma espécie de teocracia evangélica, aliada, no caso brasileiro, à extrema direita norte-americana, para um controle tácito e indireto do país, principalmente nos setores da educação e da cultura.

O genocídio dos yanomamis faz parte desse objetivo de extermínio da cultura indígena pela evangelização, para que abandonem a crença xamanista de seus antepassados. E não se pode esquecer o que ocorreu em alguns anos no Brasil: dominada religiosamente a maioria da população crédula brasileira pelas seitas evangélicas, hoje já calculada em 30% dos habitantes, se tornará quase impossível retornar ao Estado laico.

Filmes brasileiros em Berlim, além de “As Miçangas”, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor, na competição internacional de curtas-metragens: na mostra paralela Panorama, “Propriedade”, de Daniel Bandeira, sobre a disparidade das classes sociais no Brasil; na mostra Fórum, “O Estranho”, de Flora Dias e Juruna Mallon, filmado no aeroporto de Guarulhos; na mostra Fórum Especial, “A Rainha Diaba”, de Antônio Carlos Fontoura, em cópia restaurada; na mostra Forum Expanded, o curta metragem “A Árvore”, de Ana Vaz; na mostra Geração14Plus, o curta metragem “Infantaria”, de Laís Santos Araújo.

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Náufrago da Utopia: RUI MARTINS: BRECHT O CHAMARIA DE "IMPRESCINDÍVEL"Rui Martins – é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.

 

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