TARDES

Ao sabor das tardes. Por Antonio Contente

…Pense que uma das melhores para nos entregarmos ao sabor das tardes é nos instantes dos seus quase últimos suspiros. É quando a luz que tomou o ar com tanta densidade no pós-meio-dia vai finalmente se filtrando entre galhos e troncos para, antes mesmo do sol cair, se transformar na cadência francamente palatável de um soneto decassilábico com métrica, rima, e que nunca será escrito…

Tempo volta a esquentar e máxima pode chegar a 36ºC nesta segunda-feira - A Crítica de Campo Grande Mobile

Sentemos, amigos, ao sabor das tardes. Deixe que ele o tome, na sua plenitude dos abraços ora quentes, ora frios, desta época do ano, tendo em mente, sempre, a curtição da hora. Pense que uma das melhores para nos entregarmos ao sabor das tardes é nos instantes dos seus quase últimos suspiros. É quando a luz que tomou o ar com tanta densidade no pós-meio-dia vai finalmente se filtrando entre galhos e troncos para, antes mesmo do sol cair, se transformar na cadência francamente palatável de um soneto decassilábico com métrica, rima, e que nunca será escrito. Veja que a claridade das tardes não apenas dança, há também instantes em que se pode, praticamente, contê-la entre os dedos. Outras vezes é fluido que escorre pelas paredes, desce em cascatas pelos beirais, tornando-se até bailarinas nas dobras do balançar das cortinas. Perceba com que translúcida emoção acompanha o som dos muitos acordes que sempre estão dentro de nós.

Entregar-se ao sabor das tardes exige certa disposição de correr contra o tempo; não em busca do alcançar, sim de não deixá-lo escapar no que conta e canta. Pra mim ainda existem, e nunca deixarão de existir, cadeiras em portas e sob janelas para abrigar os que são tomados pelo sabor das tardes. E não só em sossegadas ruas sombreadas por sibipirunas, oitis ou espatódias, pois na semana passada mesmo armei uma bela espreguiçadeira em pleno largo do Rosário, pelas 17 horas, onde vi e senti pombos, depois ouvi o cronista Zeza Amaral, na sua versão de músico, a dedilhar o violão e cantar para as pessoas que buscavam rumos apressadamente. De casa, é bem provável; e diminuindo os passos ante o som que fluía com sinceridade e afeto.

Entregar-se ao sabor das tardes é um dos componentes da receita que leva à grande alquimia da consecução do que parece impossível. Quando se pode caminhar por pastos subitamente tomados por cordeiros e vacas em plena avenida Francisco Glicério. Nessas horas em que as luzes fluem, as estátuas se movem e os santos saem de seus nichos para abençoar os transeuntes, tornando possível, real, a sempre inalcançável paz entre os homens. Dizem que até nas guerras, não só as antigas, sempre ocorrem momentos em que os ódios, tomados pelo passar de certas horas das tardes se abrem ao silêncio para trinados de pássaros que substituem tiros.

É ao sabor das tardes que voltam os bons fluidos de ruas que talvez nem existam mais. De casas que abrigaram amores que continuaram eternos mesmo após o término, e do reencontro de gestos que permanecem esculpidos nos limites das horas propícias aos encantos. É ao sabor das tardes que retornam as moças d’outrora, com cabelos curtos e sorrisos de dentes mais alvos do que as neves do Kilimanjaro, donas de gestos que corporificavam pétalas e essências de pulsantes estrelas. É então que passam, nem longe nem perto, apenas passam, os guardados que não podem ser esquecidos. Estão entranhados na essência do sabor das tardes todos os sons das canções conclusas e ouvidas, além das inconclusas que, por tudo que significaram os momentos, também, paradoxalmente, foram escutadas e até cantadas. É bom renavegar nas palavras ditas que os ventos não levaram, e também nas não ditas que podem até ser mais importantes; pois, impronunciadas, se refugiam nos ninhos invioláveis dos corações e das almas.

Ao sabor das tardes a maior certeza que devemos ter é que somos eternos. Pois só o pulso do toque da beleza fornece a fórmula da perenidade absolutamente irrecorrível. Ao sabor das tardes estando nas montanhas podemos navegar por rios; quando nestes, podemos escalar os Himalaias das suposições que são verdades; e se, num jardim, nele permanecemos; pois uma rosa é uma rosa, uma rosa, uma rosa…

Amanhã ou depois posso até, e com certeza o farei, navegar por outras descobertas tão importantes. Mas hoje me sinto absolutamente capaz de embalar a ideia de bem viver o sabor das tardes. Sinto que posso colocar tudo numa caixa coberta com papel azul, para ofertar à minha interminável coleção de saudades. Que é, afinal, o grande alimento para que este calejado navegante de tantos mares possa ainda escrever sobre os intermináveis mundos que restam por ser descobertos. Todos incrustados nas dobras sutis do sabor das tardes. Entregue-se de vez em quando a eles. Para ser Colombo a chegar em praias nunca antes pisadas.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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