QUEDA DE BRAÇO

A queda de braço no Planalto Central. Por Fernando Gabeira

…O tipo de correlação de forças que se definiu no período pós-eleitoral é um grande desafio. Pode, em caso de inabilidade, levar à paralisia, mas, por outro lado, tem chances de amadurecer ambos os lados…

(ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S. PAULO, 
E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br,
 EDIÇÃO DE 9 DE JUNHO DE 2023)

O que acontece num país onde o governo é de esquerda e o Congresso, majoritariamente de direita? Essa questão colocada pelo resultado das urnas de 2022 ainda está para ser respondida no Brasil.

A hipótese mais comum é de um jogo de soma zero, em que os atores se neutralizem. Mas essa hipótese significa abrir mão das habilidades políticas e condenar o País à estagnação.

Apesar de todo o noticiário sobre a crise entre governo e Câmara dos Deputados, há indícios de que o País avança, apesar das divergências.

O primeiro passo, creio, é admitir que existem também convergências. Elas se manifestam em medidas econômicas – aliás, um campo em que as coisas estão melhorando, embora ainda não de forma espetacular ou mesmo sustentável. Foi aprovado o arcabouço fiscal e caminha-se para a aprovação da importante reforma tributária. As políticas de escalonamento e perdão de dívidas, do projeto Desenrola, assim como o estímulo à indústria automotiva têm grande chance de aprovação. Não entro no mérito desta última, mas o fato é que tanto governo como Congresso já se habituaram a incentivar a indústria automobilística, que, por sua vez, parece também ter-se habituado a pegar no tranco da ajuda oficial.

Mesmo com críticas a uma ou outra medida econômica, a verdade é que neste campo as convergências predominaram, e sempre que há muito ruído o melhor é enfatizar as convergências, porque isso não resolve, mas facilita a solução dos conflitos.

Um ponto que também ajuda é uma certa fidelidade entre instituições republicanas. O governo, por exemplo, quis alterar o marco do saneamento básico, votado pelo Congresso. É razoável que tenha perdido a batalha. Por outro lado, as alterações na estrutura do governo feitas pelos deputados são também um desrespeito entre Poderes. Afinal, eleito pela maioria com um programa, o presidente tem o direito de organizar os ministérios à sua maneira para realizar a tarefa prometida.

Outro aspecto que precisa ser revisado é a distribuição de cargos. O governo procurou ser amplo. No entanto, é cada vez mais difícil de definir quem é ou não representativo. A saída continua sendo a de checar os votos de apoio, quem traz e quem não traz votos. Esse quesito também é solucionável dentro dos critérios de presidência de coalizão.

O que parece realmente um impasse é o manejo do Orçamento. O chamado orçamento secreto era uma grande comodidade para os deputados e senadores. Não dependiam dos ministros. Ocorre que isso era ilegal e o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu. Quase R$ 10 bilhões ficaram ainda pendentes e parece que Arthur Lira quer usá-los como antes. Isso implicaria até confrontar uma decisão do Supremo.

Neste momento, o debate não é favorável a Lira. Estourou o escândalo dos kits de robótica nas escolas de Alagoas. O dinheiro desviado veio do orçamento secreto, por meio de emendas do próprio Lira, e um dos suspeitos foi seu assessor. Enfim, há muitos detalhes inconvenientes para quem aspira a distribuir verbas como fazia no passado. Isso sem contar outros escândalos que já surgiram a partir do orçamento secreto, mesmo sem uma auditoria rigorosa no uso de todos esses recursos.

Resolvidas essas questões, resta ainda um amplo terreno da luta franca, do perde e ganha típico do jogo da política. Não é uma tragédia para o governo perder uma outra votação. O que é necessário, neste caso, é saber que existem pesos e contrapesos, algo que escapa aos radicais imediatistas. No caso da Câmara, por exemplo, votar contra a decisão do Senado a possibilidade de ampliar a destruição da Mata Atlântica, certamente, implicaria um veto presidencial e, caso não existisse, um questionamento no próprio STF.

O tipo de correlação de forças que se definiu no período pós-eleitoral é um grande desafio. Pode, em caso de inabilidade, levar à paralisia, mas, por outro lado, tem chances de amadurecer ambos os lados.

Não se trata, é claro, de atenuar as diferenças que existem nem de negar a polarização. O que é necessário é uma nova visão para trabalhar com diferenças e polarização fora do período eleitoral, num momento em que o País não só precisa crescer, mas também solucionar alguns dos seus problemas fundamentais.

Isso coloca também para os observadores uma dupla opção: pôr fogo no circo ou lembrar com insistência de que é possível conviver e produzir com diferenças políticas tão sensíveis como as que existem hoje no País.

Enumerei apenas alguns fatores que podem desatar os nós. Muita coisa depende também do comportamento. A tentativa de seduzir as redes sociais leva para a Câmara uma tática sensacionalista, um tipo de agressividade que gera likes, mas não faz avançar o processo. Isso não tem solução, uma vez que grande parte dos deputados depende das redes para se eleger, sobretudo depois de 2018. A única saída é reduzir os danos, elevando o nível do debate e isolando, dentro do possível, as performances espalhafatosas.

Em síntese, vale a pena revisitar o pensamento de Dilma Rousseff para focalizar este embate governo-Câmara: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”.

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