glotocídio

Glotocídio é pouco. Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão

…Na medida em que a colonização avança, as línguas e culturas nativas vão sendo enterradas, cometendo-se, no mínimo, um “glotocídio”, justificado ainda hoje com a crença de que a diversidade atenta contra a unidade nacional.

Glotocídio
Nheengatu

As ministras do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber e Carmen Lúcia estiveram a semana que passou no interior do estado do Amazonas, precisamente,  em São Gabriel da Cachoeira, para lançar o texto da Constituição Federal, de 1988, em nheengatu, língua indígena por meio da qual presume-se poder contatar a maioria dos povos que vivem às margens dos rios amazônicos.

Só no município de São Gabriel, que separa o Brasil da Colômbia e da Venezuela, falam-se 25 línguas das famílias aruak, tukano e maku. Em se tratando da língua portuguesa, a população é, no mínimo, analfabeta funcional. O nheengatu é uma das quatro línguas indígenas oficializadas no município junto com o português, o maku e o tucano, usadas tanto do lado do Brasil quanto dos países vizinhos. A reminiscência dessas línguas deve-se, sobretudo, às várias associações e entidades civis, religiosas e indígenas sediadas ali, e que se propõem a organizar aquela multiculturalidade.

Juntas, formam o que é conhecido na região como a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), que funciona independente, associativamente, nos moldes do branco, quase como uma assembleia, na qual cada nação indígena se faz representada, sem comprometer suas atividades e organização cultural.

Por isso, embora a Constituição em nheengatu possa ter sido festejada pelas autoridades políticas locais, aventa-se na comunidade que ela terá, entretanto, poucos leitores por ali. O índice de alfabetização é baixo, e aquelas nações indígenas já tem uma estrutura comunitária ou tribal.  Teme-se, inclusive, que a Lei do Branco, na sua volubilidade, vá causar confusão entre os povos da região. Se não gerar um dilema político, pode vir a ser recebida como mais uma agressão à cultura e à organização das nações indígenas regionais.

Tem-se dúvida quanto ao simbolismo implícito: a presença das ministras do Supremo Tribunal e a distribuição de cópias do texto da Lei Maior do Branco para aqueles povos enraizados na região. Poderia ser interpretada por ali como uma bandeira de vencedor, tomando posse do território do outro. De outro ângulo, inspirado em doutrinas de segurança nacional, poderiam ser vistas como um desafio às diferentes frentes potenciais invasoras que, vez por outra, anunciam a autonomia regional?

 A “Cabeça de Cachorro”, como é identificada a região, é uma das áreas mais isoladas do Brasil. É cheia de histórias e controversas. É rica em gás natural, as guerrilhas colombianas estariam sempre tentando circular por ali, religiosos de diferentes denominações e geólogos estrangeiros circulam por ali. Já se chegou a cogitar da ideia de um território autônomo e exclusivo. Aliás, até Che Guevara imaginou começar uma insurreição no continente por ali.

“Estamos só de passagem”, dizem os invasores, quando interceptados no alto rio Negro atravessando a fronteira para o Brasil, vindo da Colômbia ou da Venezuela. A ordem dos militares é para a interceptação: “Aqui é o fim da linha”. A unidade militar do Comando de Fronteira, até há pouco tempo, era a única presença efetiva do Governo Federal na região: Funasa, Receita, Ibama, Polícia Federal, Ministério do Trabalho, estão instalados por lá, às vezes, em uma única sala, a maioria do tempo fechadas.

As titulares da Justiça no Brasil levaram para os índios uma tradução da Constituição em nheengatu, uma língua, falada sobretudo, tão vacilante quando a Constituição do Brasil. É como se insinuasse que os ensinamentos e regras sociais contidos na Lei do Branco fossem superiores  às praticadas na região, apreendidas nas  culturas incubadas nas matas e serras que cobrem aquelas fronteiras.

Por meio dessa ação – não sei se intempestiva, ou não – tenta-se dar um passo a mais na aculturação e na integração, à Nação Brasileira, daquelas populações indígenas quase isoladas. A gestão do município obedece à um modelo próprio. Os prefeitos de São Gabriel, Santa Izabel, Barcelos e povoados menores por ali são, quase sempre, indígenas.

Como uma das línguas oficiais em São Gabriel e Santa Izabel, o nheengatu não é uma língua exclusiva de uma Nação Indígena. É constituído de palavras de diferentes falas que se amalgamaram num idioma. Trata-se de uma língua geral, surgida ainda nos tempos do Império, a partir dos padres, e retomada por iniciativa do general Couto Magalhães, também etnólogo e historiador, que procurava encontrar um meio termo entre mais de 150 falas indígenas ao longo do rio Amazonas e seus afluentes.

Descobriu ele ainda que o tupinambá – uma variável do tupi – falado pelos índios entre Belém e o Maranhão, podia ser compreendido pelos índios do médio Amazonas e do no Alto Rio Negro.

Etnólogos brasileiros acreditam que, com o nheengatu. poderiam ser preservadas, parcialmente, as memórias de dezenas de línguas e culturas regionais.  Há centenas de histórias já narradas em Nheengatu, língua que vem preservando a memória coletiva ancestral, incluindo mitos, preceitos e normas gerados, segundo os índios, por uma entidade sobrenatural conhecida por Jurupari, vista por religiosos brancos como o diabo.

No fundo, o Estado Brasileiro, insiste na bandeira de “uma só língua, um só país”. Na medida em que a colonização avança, as línguas e culturas nativas vão sendo enterradas, cometendo-se, no mínimo, um “glotocídio”, justificado ainda hoje com a crença de que a diversidade atenta contra a unidade nacional. Só em 1988 a Constituição assumiu que não se trata de “tolerar” o plurilinguismo, mas de fomentá-lo, pois longe de ser algo negativo, arquiva a riqueza do patrimônio cultural do Brasil.

O lançamento da Lei Maior do Brasil em nheengatu contou com o aval explícito de uma comitiva integrada por três ministras, a presidente da Funai, o diretor da Biblioteca Nacional e de professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Não faltaram explicações de consistência duvidosa, até da Presidente do STF, ministra Rosa Weber, para quem trata-se de “um passo em direção ao fortalecimento e à preservação de todas as demais línguas indígenas” – disse, em um discurso formal no evento.

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Aylê-Salassié F. Quintão –  Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018

 E autor de Lanternas Flutuantes:

Português –   LANTERNA FLUTUANTES, habitando poeticamente o mundo
Alemão – Schwimmende-laternen-1508  (Ominia Scriptum, Alemanha)
Inglês – Floating Lanterns  
Polonês – Pływające latarnie  – poetycko zamieszkiwać świat  
Tailandês – Loi Kathong (ลอยกระทง) 

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