gente bem

by Alexandre Cechetto Beck (1972-) desenhista catarinense

… Anos mais tarde, aprendi que gente bem são os cidadãos que pertencem à alta sociedade, à elite. São os “bem-nascidos”.Se eu soubesse, minha resposta teria sido: “Não, meus pais não pertencem à alta sociedade”…

by Alexandre Cechetto Beck (1972-) desenhista catarinense

Uma vez, quando eu era criança, um coleguinha (ou uma coleguinha, não me lembro bem) me perguntou: “Teus pais são gente bem?”. Não sei se dei alguma resposta, o fato é que não entendi a pergunta. Nunca tinha ouvido a expressão e fiquei com vergonha de perguntar o que era.

Anos mais tarde, aprendi que gente bem são os cidadãos que pertencem à alta sociedade, à elite. São os “bem-nascidos”.Se eu soubesse, minha resposta teria sido: “Não, meus pais não pertencem à alta sociedade”.

Em 1957, a cantora Dolores Duran lançou um samba composto por Billy Blanco, bem chacoalhado, chamado Estatuto de boate. Começava assim:

Gafieira de gente bem é boate

Onde a noite esconde a bobagem que acontece

Onde o uísque lava qualquer disparate

Amanhã, um sal de fruta e a gente esquece

Faz tempo que não ouço essa expressão “gente bem”. Acho que envelheceu, foi aposentada e hoje goza de merecido repouso na gaveta do esquecimento.

Por seu lado, há outra, bem parecida, mas de significado diferente. É gente de bem. Essa, parece, surgiu durante o regime militar, lá pelos anos 1970. Incentivada sabe-se lá por quem, estigmatizava todo oponente à ditadura. Gente de bem era o cidadão ‘normal’, de bons costumes, vida regrada, se possível cristão e, sobretudo, apreciador do regime (ou, pelo menos, conformado de viver numa ‘democracia relativa’). Quem não fosse gente de bem levava, fácil fácil, o carimbo de terrorista.

Aqueles tempos sombrios passaram. Faz alguns anos, porém, um cidadão egresso das trevas decidiu reativar aquela expressão velhusca e dar-lhe uma segunda vida. A expressão é gente de bem e o cidadão, Jair Bolsonaro. Em suas falas, volta e meia o capitão soltava um “gente de bem” ou, melhor ainda, um “cidadão de bem”. O novo significado, sem surpresa, é bem próximo do que vigorava nos tempos ditatoriais: o cidadão de bem é aquele que adere à tortuosa ideologia da extrema direita ou, pelo menos, que se resigna calado.

O antigo “gente bem” passou. O “gente de bem” da ditadura também se foi. O “cidadão de bem” bolsonárico já está passando.

Tudo passa. Amanhã, um sal de fruta e a gente esquece.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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