ASSIS VALENTE

ASSIS VALENTE

Assis Valente: vitória da tragédia. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Ao lado do Assis Valente hilário, romântico, cantador das nossas coisas, há um homem melancólico,
angustiado, decepcionado com a vida que via com olhos ingênuos e esperançosos,
mas que lhe provocou frustações e mágoas.
ASSIS VALENTE
ASSIS VALENTE
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE S.PAULO OPINIÃO,
 BLOG FAUSTO MACEDO, 
1º DE FEVEREIRO DE 2024

Talvez tenha sido o compositor brasileiro que revelou a sua vida interior com mais transparência e clareza, com as suas angústias, esperanças, desencantos sempre com um pano de fundo relacionado à busca incessante pela felicidade e pela alegria nunca encontradas. Não pense que suas letras eram lamuriosas, chorosas, repletas de queixas e de sofrimentos. A sutileza que empregava em letras por vezes até hilárias encobria a sua melancolia e as frustações que a vida lhe proporcionou.

A melodia era primorosa, quer dos sambas, quer das marchas e de algumas que lembram valsas. Havia uma sintonia perfeita entre os acordes e os versos. Era fácil gravá-los e fixá-los na memória.

Assis Valente não possuía nenhum conhecimento teórico de música, era o puro dom que a natureza lhe dotou. Aliás ele possuía uma outra aptidão que lhe deu alguma notoriedade no respectivo meio: era um protético de excelente qualidade. Fazia dentaduras e próteses com o mesmo esmero que se dedicava às suas composições. Alguém disse que ele era um artista no desempenho dessas funções. Ademais, tinha grande habilidade para o desenho tendo, inclusive, sido premiado em concurso público.

Foi um fiel retratista do Rio de Janeiro de seu tempo, pelos anos de 1934. No entanto, não se limitou a musicar hábitos e costumes cariocas. Trouxe para as suas composições fatos da sua época que estavam no centro dos interesses sociais. Havia, por exemplo, uma grande apreensão com as notícias sobre uma grande catástrofe que poderia atingir a humanidade. Sensível a esse temor coletivo compôs a magnífica “E o Mundo Não se Acabou”. A crença no fim do mundo teria levado alguém a fazer coisas incomuns, como beijar a boca de quem não beijaria, gastar com antigos desafetos, para no fim concluir que o “mundo não se acabou”.

Várias de suas músicas denotam a sua verve humorística e irônica. “Recenseamento”; “Uva de Caminhão”, “Tem Francesa no Morro”, “Camisa Listrada”, “Maria Boa”, “Isso Não se Atura”, e outras. Enalteceu o samba e as coisas do povo simples como poucos compositores o fizeram. Trouxe para suas composições as festas brasileiras, especialmente a junina. “Olhando o Céu Todo Enfeitado” e “Cai Cai Balão “, nas quais já mostra uma tendência à melancolia.

A composição “Isso não Se Atura”, uma inteligente apologia do samba de morro, satiriza os críticos desse ritmo. Das suas músicas românticas a mais expressiva e poética é a maravilhosa “O Vento e a Rosa”.

Ao lado do Assis Valente hilário, romântico, cantador das nossas coisas, há um homem melancólico, angustiado, decepcionado com a vida que via com olhos ingênuos e esperançosos, mas que lhe provocou frustações e mágoas. Várias de suas músicas descortinam claramente essas características, ao lado de sua constante busca de alegria e da felicidade.

Duas canções exprimem essa sua ânsia, nunca satisfeita. Na “Alegria” conclama ao samba, pois quem samba “tem alegria”. A sua gente que era “triste e amargurada” passou a batucar para “deixar de padecer”. Ele também padecia com a tristeza, por isso iria “deixar a cruel nostalgia” para, “esperando a felicidade” pensar que fosse melhorar “fingindo alegria” para “a humanidade não me ver chorar.”

O mesmo sentimento de frustação pelo não alcance da felicidade e da alegria ele retratou em “Minha Embaixada Chegou”. Nela ele pede ao povo “na batucada desacatar” e vir “vadiar no meu coração” e diz à amada “cair na folia” para esquecer a tristeza “mentindo à natureza” e “sorrindo à tua dor”.

Em ambas as canções ele coloca o samba e a batucada como instrumentos para atingir o seu tão almejado estado de felicidade.

A sua composição emblemática, síntese do seu sofrimento, angustiante busca da felicidade e sua decepção por não a encontrar foi “Boas Festas”. Enquanto “a gente ficou feliz a rezar” ele pediu a Papai Noel “a felicidade para você me dar”. Fez esse pedido, pois pensou “que todo mundo fosse filho de Papai Noel” e que a felicidade fosse “brincadeira de papel”. Decepcionado e solitário concluiu que “o meu Papai Noel não vem”, pois com certeza ele já morreu ou então a “felicidade” é um “brinquedo” que ele “não tem”.

Esse magistral músico/poeta depois de duas tentativas de suicídio, uma delas atirando-se do Corcovado, obteve êxito ao tomar veneno, sentado em um banco de jardim. A tragédia venceu a ingenuidade, a alegria e a felicidade.

Ouça:

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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.

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