ADONIRAN

Adoniran e o cinema. Por Antonio Contente

… naquela tarde  dos anos 70, Adoniran Barbosa me revelou que tinha assistido a uma comédia filmada pelo diretor Egidio Ecio, chamada Cada um Dá o Que Tem, com argumento baseado em história minha. Então tive o estalo de perguntar se ele aceitaria que eu escrevesse algo especialmente para ele…

Adoniran Barbosa
Adoniran, em O Cangaceiro

Naquele tempo, começo dos 70 do século passado, não era incomum que pessoas, em geral as mais velhas, usassem gravatas borboleta. Mas em Adoniran Barbosa a pecinha colada ao pescoço ficava diferente, pois lhe conferia certo toque de personagem de romance inglês. E foi esta figura que vi assim que entrei na sala do produtor Oswaldo Massaini, uma espécie de templo do cinema instalado entre os ares pecaminosos da rua do Triunfo, na Boca do Lixo paulistano. Minha missão ali era entregar um chumaço com historinhas que eu escrevia no jornal Última Hora (segunda fase, pertencente à Folha). O famoso produtor, responsável pela única Palma de Ouro que o Brasil ganhou em Cannes, com O Pagador de Promessas, buscava argumentos para as comédias mais ou menos eróticas que conseguiam passar pelo crivo da censura da ditadura vigente então. Vivia-se a era das chamadas “pornochanchadas” que geraram, se assim se pode chamar, alguns clássicos do gênero como O Homem de Itu e A Superfêmea. Pois bem, ao ser apresentado a Adoniran ele levantou, baixou o copo com o uisquinho que tomava sobre a mesa, e me deu um abraço.

         — Sabe? – Disse, com sua voz rouca – Não perco uma história sua.

Num primeiro momento meu ego inflou a ponto de estourar. Porém logo me passou pela cabeça que o famoso compositor, que estaria com 114 anos se vivo fosse, dizia aquilo apenas pra me agradar, eu um moleque de menos de 40 anos. Entretanto, ao mesmo tempo em que me indicava uma cadeira sob os olhares atentos de Massaini, deu novo gole, para  acrescentar:

         — Li uma que você escreveu em que…

Daí narrou complicado enredo, do qual eu nem lembrava mais (afinal, fazia uma história por dia, domingos inclusive), afirmando, ao final:

         —O velhote que se torna amante da esposa do açougueiro no Braz, era o tipo do personagem que eu gostaria de fazer…

Na verdade conto isso pois em tudo que já li até agora sobre o autor do Trem das Onze, encontrei poucas referências ao seu viés de ator de cinema e TV. Nesta última, aliás, marcou presença na pré-história das novelas ao atuar na Pensão de Dona Isaura, da falecida Tupi, grande sucesso. E experiência para isso Adoniran tinha: nos anos dourados do rádio deu vida a fascinantes personagens criados pelo lendário Oswaldo Moles. Como o impagável Charutinho.

As novas gerações certamente não sabem, porém Barbosa atuou em pelo menos uma dúzia de filmes, um deles clássico premiado na Europa. Refiro-me ao Cangaceiro, de Lima Barreto. Foi, todavia, nas comédias que o doublé de compositor trafegou com razoável desenvoltura, valendo destacar que estreou no cinema em 1945 fazendo um papel na película Pif Paf. Com Mazzaropi esteve em pelo menos dois dos seus maiores sucessos dos anos 50, A Carrocinha e Candinho. Mais adiante, na época das já referidas pornochanchadas, volta e meia dava-se de cara com a presença do ator Adoniran. Apenas dois exemplos: Elas São do Baralho e Superfêmea. Em atuações mais, digamos, sérias, atuou em Bruma Seca, A Estrada e Caídos do Céu.

Pois bem, de volta à sala de Oswaldo Massaini naquela tarde  dos anos 70, Adoniran Barbosa me revelou que tinha assistido a uma comédia filmada pelo diretor Egidio Ecio, chamada Cada um Dá o Que Tem, com argumento baseado em história minha. Então tive o estalo de perguntar se ele aceitaria que eu escrevesse algo especialmente para ele, sugerindo que a direção fosse dada a Egidio. Como topou na hora, ao sair do encontro quase um litro de uísque depois, cheguei em casa eufórico. Na mesma noite sentei na velha Remington semiportátil e comecei a reinventar a história do velhote que se torna amante da mulher do açougueiro do Braz. Dias depois já com o material pronto para ser entregue ao diretor Ecio, recebi a notícia de que ele morrera repentinamente em razão de um infarto fulminante. Coincidentemente por essa época o compositor, com alguns de seus sucessos já imortalizados pelo conjunto Demônios da Garoa, estourou de vez com as interpretações de Elis Regina. Nunca mais voltamos a nos encontrar e, em 1982, ele também se foi. Tenho impressão que se procurar entre os meus guardados encontrarei a história que escrevi especialmente pra ele, com título prenhe de segundas intenções, tão comum na época: O Vegetariano que Comia Carne. Quero, à medida que for relendo a sorver um uisquinho, homenagear os cento e catorze anos do nascimento de um grande artista.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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