COMPUTADOR

Do computador às orquídeas. Por Antonio Contente

Tinha no quintal linda plantação de orquídeas, continuava a tocar violino, possuía impressionante coleção de CDs e elepês de músicas clássicas e derrubava, com inegável competência, um bom scotch. Numa das vezes em que estive no seu refúgio, pedi licença para usar o computador…

         Quando fui morar naquele casarão com muitos quartos, numa linda rua sombreada por mangueiras magníficas cujas copas ultrapassavam os telhados, eu estava com 9 anos. Deve ter sido no sexto ou sétimo despertar na nova morada que, cedíssimo, ouvi o som de um violino vindo da residência vizinha. Isso se repetiu por alguns dias até que uma das minhas irmãs, num domingo em que o som do instrumento começou a se espalhar pelas 8 horas, me disse, sem que eu perguntasse:

         — Quem está tocando é o filho do alemão.

         Foi exatamente aí que o destino, este caçador notável, começou a armar uma de suas tramas. Que me levou a conhecer um dos amigos mais importantes que já tive na vida. Amizade que só terminou quando ele morreu.

         Não, Hans Strübell não era um virtuose no instrumento que celebrizou Stradivarius. Passou a tocá-lo porque o pai, alemão de Colônia, ouvinte contumaz de músicas clássicas, deve ter influenciado o guri. E afinal fui descobrindo, à medida que nossa amizade crescia, haver dezenas de outras coisas que o garoto fazia muito melhor. Certa vez, ao me encontrar saindo de casa com um relógio despertador na mão, perguntou o que eu ia fazer. Respondi que levava o objeto para consertar.

         — Deixa ver – Hans pegou a máquina emperrada.

         Olhou, revirou, depois me conduziu ao porão de sua casa onde mantinha mesa com pequenas tralhas e ferramentas. No instante em que abriu a maquininha, me apavorei. Mas ele puxou aqui, desparafusou ali e, em coisa de minutos me devolveu com um “pronto, tá bom”. Ao entregá-lo à minha mãe, confesso que estava com medo. Infundado, porém. Pois o velho despertador funcionou perfeito, para sempre.

         Nos anos seguintes descobri que Hans fazia autópsia de lagartixas e insetos, catalogava (fotografando) os passarinhos que transitavam pelos quintais, construía barquinhos usando como propulsor tubos de ensaio cheios de uma substância que espumava, botava para voar aviõezinhos com hélices cuja rotação ocorria por meio de elásticos enrolados e, suprema maravilha: sabia fazer “rádios galena”; que capturavam as ondas sonoras através de uma pedra que, até hoje, não sei direito o que é.

         Nessas condições o que era fatal aconteceu. Quando eu e meu amigo saíamos da adolescência começaram a aparecer os pré-computadores, tralhas imensas que pesavam toneladas e a que chamavam de “cérebros eletrônicos”. A multinacional que os fabricava e manipulava era a IBM, que existe até hoje. Hans se apresentou à sucursal da nossa cidade, fez concurso, passou em primeiro lugar e iniciou uma carreira.

         Agora, como se isso fosse um filme, faço corte para muito tempo depois, ele morando no Rio como graduado técnico da empresa que cito acima, e eu em Campinas. Já corriam então os anos oitenta do século XX; permanecia em casa, no Cambuí, noite de sábado, toca o telefone. Claro que em milênios de amizade reconheci imediatamente a voz do fantástico Alemão, que é como o chamávamos apesar de ele ser brasileiro. Perguntei logo sobre o tempo no Verão do Rio, porém respondeu que não sabia.

         — Até porque estou em Chicago. Vinte graus abaixo de zero!

         — Chicago? Fazendo o que, rapaz?

         — Ah, deu uns troços numas máquinas da IBM aqui e me chamaram para dar jeito.

         Na continuação mandava cartões ou ligava de variados lugares, como Nova York, Toronto, Cidade do México e até Paris,  Londres, Roma… Sempre dando jeito em computadores que, ao que tudo indicava, só atendiam às ordens dele.

          Conto esta história porque, pouco antes de Hans morrer, no começo deste século, ele, devidamente aposentado, morava numa bela cidadezinha na Serra da Mantiqueira, perto de Campinas, casado com Silvie, uma francesa. Tinha no quintal linda plantação de orquídeas, continuava a tocar violino, possuía impressionante coleção de CDs e elepês de músicas clássicas e derrubava, com inegável competência, um bom scotch. Numa das vezes em que estive no seu refúgio, pedi licença para usar o computador. Recebi então a resposta de que o equipamento estava com defeito.

         — Ué – suspirei – e o que falta para você consertar?

         — Tudo, pois desses aí não entendo patavina. Mas já chamei o rapazinho frentista lá do posto de gasolina; é um craque nessas geringonças que só sabem me derrubar.

         Preparou então duas doses de um indesmentível 18 anos. Alguns meses depois Hans Strübel, dormindo, morreu. Silvie voltou para Rouen, na Normadia.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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