Queen

God sHave the Queen. Por Antonio Silvio Lefèvre

A primeira ofensa à monarquia britânica, da qual eu e a futura atriz Etty Fraser fomos testemunhas.

 

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Era o início das aulas de 1954 no majestoso casarão da Avenida Higienópolis, em São Paulo, onde ficava e até hoje está a sede da Cultura Inglesa.  Acabara de ser inaugurado lá, no enorme salão de entrada, um belo retrato da Rainha Elizabeth II, que havia sido coroada no ano anterior. Ao entrar na Cultura Inglesa parecia que estávamos no palácio, em Londres…

Então com dez anos de idade, eu começava a tomar aulas lá, para onde, naquela segura cidade dos anos 50, meus pais me deixavam ir sozinho, de bonde, que pegava na Avenida Paulista e descia a Avenida Angélica, até a esquina da Higienópolis. Ousadia que nunca permiti a minhas filhas quando nesta idade, na década de 1980, numa São Paulo já bem menos segura, e nem de longe foi permitida a meus netos, nos anos 2000, ainda bem.

Sim, já dava para eu tomar aulas de inglês na Cultura, pois minha agenda começara a ficar um pouco mais folgada. Eu tinha deixado há pouco o meu papel de Pedrinho, no Sítio do Picapau Amarelo da TV Tupi, por pressão de minha mãe que achava que televisão era perda de tempo, pois “ninguém tem esse aparelho, ninguém vê”  e os ensaios e apresentações estavam “atrapalhando meus estudos”.

Verdade que a TV tinha começado no Brasil há pouco tempo: a Tupi de São Paulo foi a primeira do Brasil.  A maioria dos meus colegas de escola no Mackenzie não devia ter TV em casa pois nenhum deles notou que tinha um ator mirim da televisão na classe.

Foi, portanto, com muita surpresa, que minha primeira professora na Cultura Inglesa, “uma tal de Etty Fraser…”, veio falar comigo e me chamou de Pedrinho.

Sim, a Etty ainda não tinha iniciado a sua carreira no teatro, como uma das participantes do Oficina e estava longe de começar a carreira em que ficou famosa, na TV e no cinema, muitos anos depois. Era professora de inglês, mas já uma aficionada pelo teatro, não perdia nada nos palcos e nas poucas telas de TV de então. E depois das aulas vinha conversar comigo, querendo saber de tudo, como eram os ensaios na TV, como eram os outros atores, quem eu tinha conhecido lá, pois – me confessou – ela mesma sonhava em ser atriz, como eu.

Achei assim que ela estava encenando uma cena teatral quando um belo dia entrou, esbaforida, em nossa classe e perguntou a todos, em português mesmo: “Quem de vocês fez essa ofensa à nossa Rainha?”

Eu fingi que não sabia, mas já tinha visto e ficado quieto. Outros colegas não sabiam do que se tratava, e então a professora Etty fez questão de nos levar a todos para ver: um vistoso bigode pintado no retrato da rainha e, nos dizeres de baixo, uma grande letra H, introduzida no lema britânico, transformado então em “God SHave the Queen”.

Eu não contive o riso pela boa piada, mas muitos colegas da classe não entenderam, porque eram novatos em inglês e não tinham ainda aprendido o significado do verbo “To Shave”. A professora teve então que explicar que este verbo significava “barbear”, e então a gargalhada foi geral e não faltou um que dissesse que “Deus então vai resolver isso” …

Muito sem jeito de ter que dar uma bronca geral por algo que ela deve ter percebido como uma piada boa, mas perigosa, a Professora Etty leu um comunicado da diretoria da Cultura Inglesa, abominando esse “insulto à nossa Rainha” e solicitando a quem soubesse quem fez isso que de imediato informasse a diretoria, pois o autor da blasfêmia seria expulso.

Houve silêncio geral na classe. Percebi por alguns olhares que alguns colegas deviam saber de algo, mas se calaram. O mesmo comunicado foi lido nas outras salas de aula da Cultura Inglesa e, ao que eu saiba, o culpado não se entregou e nem foi “entregue”.

A professora Etty abordou o Pedrinho no final da aula e pediu a ele que a acompanhasse, a pé, até o prédio onde morava, que ficava bem próximo, na Rua Sabará. E, no caminho, me perguntou se eu sabia do segredo, garantindo que não contaria a ninguém que eu havia falado. Como eu jurasse que não sabia (e não sabia mesmo) ela me perguntou, irônica, se poderia ter sido a boneca Emília, a Narizinho ou o Saci Pererê, pois parecia “reinação” do Sítio…

O retrato da Rainha foi retirado do hall de entrada e, algum tempo depois, substituído por outro com uma forte proteção de vidro. Ao longo dos anos em que continuei aluno da Cultura Inglesa, até ganhar o certificado de Cambridge, nunca se soube, ao que eu saiba, quem foi o autor do crime de lesa majestade.

No meu imaginário infantil e adolescente, a rainha da Cultura Inglesa passou a ser a Etty Fraser, cuja carreira, como atriz, acompanhei com admiração. E que faleceu em 2018, infelizmente sem um funeral de rainha, como mereceria.

Pretendo dar uma passada, em breve, na Cultura Inglesa, para ver se já colocaram lá um quadro do Rei Charles III e se está bem protegido por vidro, para que não leve também um “bigode nas fuças” como a sua adorada mãe.

Pois, ao que tenho visto pelas fotos, ele parece estar sempre bem barbeado. God shaves the king every day.

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ANTONIO SILVIO LEFÈVRE é sociólogo (Université de Paris), editor e livreiro. Interpretou Pedrinho na 1ª adaptação do “Sítio do Picapau Amarelo” para a TV, em 1954. Veja no Museu da TV.

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