TUCANO

O voo daquele tucano. Por Antonio Contente

…De repente, escuto um ruflar de asas. E, olhando para o alto vi, com estes parcos olhos que a terra não há de comer, um tucano que pousou num galho mais grosso…

TUCANO

         Pois é, amigos, arrisco afirmar que no entorno deste tugúrio que me abriga das intempéries, aqui na Chácara da Barra, voejam muitos pássaros. Colaboram pra isso as boas árvores que vicejam no pedaço, amplas, galhudas. E como complemento nada desprezível, um pouco mais acima, no alto da rua Pedregulho, abre-se uma boa área verde. Na qual, para usar uma palavra relativamente exótica, abundam as amoreiras. Nas quais emplumados de várias espécies e ordens sempre pintam nas horas de fome.

         Mas o que queria contar é que, a catar a fresca de certa manhã antes do atual Inverno chegar sentei, em época fora de safra, à sombra das frondosas goiabeiras que brotaram, plantadas exatamente pelo cocô d’algum passarinho, no pequeno jardim que ladeia a garagem. De repente, escuto um ruflar de asas. E, olhando para o alto vi, com estes parcos olhos que a terra não há de comer, um tucano que pousou num galho mais grosso.

         Pois é, falo, no começo deste texto, que por aqui costumo ver muitas aves. As mais recorrentes são as rolinhas, que descem em toda parte; a me recordar de indagação que ouvi num filme, quando o galã pergunta para a estrela onde é que pousavam os pássaros na época em que não existiam os fios de telefones e de luz, nas ruas. Porém, no meu redor costumo ver sanhaços, canários da terra, maritacas, curiós, andorinhas etc. Certa vez, quando existia um bar em rua perto e no qual eu ia de vez em quando serrar uma breja, testemunhei, por várias vezes, o labor de um esperto pica-pau a bater bico numa velha árvore fincada na porta, junto às mesas. Sempre me contaram, também, que, nas madrugadas, pintava um casal de corujas a voar sobre as ruas na solidão das horas. Em verdade, não acreditei. Mas acabei, certa época, me posicionando para matar a curiosidade; e, de fato, vi as misteriosas aves a passar em cadenciado planar no rumo do Jardim das Paineiras.

         Sim, mas eu falava do tucano daquela manhã. Inusitado, pois nunca um colorido voador da espécie, com bico de boas dimensões, aparecera por aqui. Ele pousou e achei que estava inquieto, agitando uma das asas. Não demorou muito iniciou novo voo, porém o fez de forma deselegante, como se algo o estivesse tolhendo. Tanto que logo pousou, no outro lado da rua, na reentrância de um muro. Mexia estranhamente a cabeça. E nada mais fez, pois novamente jogou-se ao espaço no rumo de uma rua acima.

         Mais um pouco, com o tucano já esquecido, saí para ir à avenida José Bonifácio pegar pão e leite numa padaria. Na volta mudei, certamente impulsionado pelas mãos do imponderável, meu trajeto; para passar na casa do amigo Schitti, um esplêndido boa praça. Cheguei, bati, fui atendido pela esposa, que estava agitada.

         — Venha, venha, entre; aconteceu uma coisa estranhíssima.

         Levou-me aos fundos da residência onde, surpreso, avistei o marido junto a uma mesa sobre a qual estava um tucano. Schitti me diz, antes de qualquer coisa:

         — Veja só, eu estava há pouco cuidado da horta ali no quintal quando, de repete, desaba ao meu lado esta ave.

         — Mas desabou assim, sem mais nem menos? – Indago, à falta de observação melhor.

         — Não – o quase vizinho modula a voz – desabou porque está ferido.

         Em seguida me mostrou que, de fato, havia um corte, com pouca presença de sangue, sob uma das asas. Olhando aquilo murmurei, pesaroso:

         — Essa ave acabou de passar pelas minhas goiabeiras. Percebi que estava inquieta, que havia algo de anormal.

         — Pois é, alguém a machucou. Talvez algum moleque, com estilingue.

         — E se a gente chamasse a doutora Sônia, veterinária que mora logo ali, na Nazaré Paulista?

         — Acho que não será preciso. Eu mesmo darei um jeito – meu amigo garantiu.

         E, de fato, Schitti foi de uma competência e dedicação extremas. Cuidou do animal com remédios que ele mesmo manipulava, calçado em suas experiências de quem já tinha sido morador das brenhas do Pantanal. Durante mais de mês fui quase todos os dias visitar a ave enferma, até que seu cuidador, certa manhã, me disse que ela estava pronta, tinha que ser levada para um lugar aberto a fim de testar se podia voltar a voar.

         Optamos por conduzir o tucano para um espaço mais amplo, não longe do Shopping Iguatemi que fica perto do nosso pedaço. Percebo que Schitti demonstrava nervosismo, fazendo tudo para conter a emoção. E então ali chegamos, sobre a grama, com o cuidador a amparar o animal por baixo. Eu queria ajudar, mas o máximo que podia fazer era dar apoio moral. Schitti, afinal, murmura:

         —Vamos ver, agora é a hora da verdade.

         Solta a ave, ela tenta bater as asas. Por fim, bate mesmo, e não demorou a se erguer no ar. Pensávamos que tomaria o rumo de Sousas, mas, uma vez no alto, voltou-se para os lados de onde fica o Bosque dos Jequitibás. Primeiro, eu a vi sumir na manhã azul. Depois, tornando a encarar Schitti, observei que duas grossas lágrimas desciam dos seus olhos de homem bom.

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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2 thoughts on “O voo daquele tucano. Por Antonio Contente

  1. Mais um conto… mas este não de Fadas ; do meu amigo escriba Toninho.. Sensacional. um dia lhe conto a historia desse, quem sabe , mesmo tucano.

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