desejo da dependência

O desejo da dependência. Por Myrthes Suplicy Vieira

…O princípio da dependência parece simples de entender: nosso cérebro está condicionado a repetir situações que causam prazer. Cada sensação prazerosa aciona um circuito cerebral de recompensa e libera uma carga de dopamina, o hormônio do prazer, que nos leva a querer experimentar de novo a sensação. A cada nova tentativa, todavia, o indivíduo vai se frustrando…

desejo da dependência

Há mais de cinco anos venho estudando e pensando em escrever sobre o tema da dependência, um tópico complexo por si só, já que se manifesta através de múltiplas formas: dependência química (drogas, álcool, comida, medicamentos), financeira, afetiva/emocional, de jogos de azar e de videogames e, mais recentemente, de gadgets eletrônicos, dentre outras.

Mesmo antes de começar, sabia da existência de centenas de estudos, que foram capazes de trazer à luz os mecanismos neuropsicológicos dessas compulsões. O princípio da dependência parece simples de entender: nosso cérebro está condicionado a repetir situações que causam prazer. Cada sensação prazerosa aciona um circuito cerebral de recompensa e libera uma carga de dopamina, o hormônio do prazer, que nos leva a querer experimentar de novo a sensação. A cada nova tentativa, todavia, o indivíduo vai se frustrando por não ser capaz de atingir a mesma intensidade de prazer da primeira experiência, não só porque os contextos são diferentes, mas também porque o organismo vai se adaptando à quantidade e à qualidade dos estímulos. Mesmo assim, ele se força a insistir na repetição, na esperança de que da próxima vez o resultado seja mais satisfatório.

Embora a explicação das neurociências me pareça necessária para produzir tratamentos mais eficazes, o que eu deduzia desse roteiro prazer-recompensa-repetição era que a dependência acaba se instalando na maior parte das vezes “por acidente”, sem que o indivíduo se dê conta desde o início de que está entrando numa cruzada cada vez mais asfixiante. E o que me motivava a persistir no estudo dos mecanismos psicológicos que levam à dependência era outra coisa: descobrir por quais motivos uma pessoa deseja conscientemente se tornar dependente de algo ou alguém.

Não sei se é porque, ao contrário de outros mamíferos, passamos por um longuíssimo período de maturação ou se a sensação de incompletude é característica inexoravelmente atrelada à condição humana. O fato é que muita gente sente a necessidade de ser tutelada por um guia, mestre ou provedor. Falo, por exemplo, de adultos que se recusam a abandonar a casa dos pais e também de cidadãos que buscam incansavelmente eleger líderes populistas autoritários que prometam abrir-lhes as portas da prosperidade e da felicidade eterna. Seja por medo de se expor a situações desconhecidas que possam causar descontrole ou pela comodidade que representa a terceirização de responsabilidades, a pessoa permanece presa a uma situação nem sempre agradável. Por quê? Baixa autoestima? Falta de autoconfiança? Limitação intelectual? Preguiça? Carência emocional? Distúrbios psiquiátricos?

Zygmunt Bauman tinha razão: se você deseja mais liberdade, tem de renunciar a um pouco de sua segurança e, se anseia por mais segurança, precisa ceder uma fatia de sua liberdade.

A autonomia sempre foi um valor sagrado para mim. Sou filha de uma mulher profundamente desapontada por não ter podido seguir uma carreira profissional fora do casamento e que resolveu jogar todas as suas fichas na criação de filhas autônomas, insubmissas às regras do patriarcado e da misoginia. Tomei como regras de ouro para minha vida a independência financeira, a busca de autoconhecimento para administrar melhor a solidão e a vontade de me autoafirmar no plano social apenas por meus méritos pessoais.

Apesar de tudo isso, recentemente enfrentei um surto inexplicável do desejo de dependência. Comecei a me ressentir da falta de interlocução com outras pessoas que me ajudassem a relativizar crenças e visões de mundo. Depois da aposentadoria e do trabalho em home office que passei a fazer, fui me isolando cada vez mais e abrindo mão de antigos prazeres, em função dos baixos rendimentos recebidos. Minhas únicas fontes de prazer diário passaram a ser minhas duas cachorras. Ultimamente, entretanto, eu já vinha notando um certo desgaste na relação com elas. Percebia que passava mais tempo recriminando suas peraltices do que interagindo com elas em brincadeiras e que os passeios diários estavam se tornando uma obrigação, mais do que um prazer. Secretamente desejava contar com a ajuda de um adestrador e de um passeador para não ter que lidar com esses sentimentos negativos.

Outra coisa de que me ressentia era da falta de variedade, sabor e valor nutricional das minhas refeições. Como nunca me interessei em desenvolver talento culinário e enfrentava restrições alimentares por ser diabética e vegetariana, via-me forçada a engolir sem nenhum prazer a gororoba básica de sempre. Sonhava em me sentar à mesa e ter à disposição, já prontos, pratos mais elaborados e “pecaminosos”, sem ter de sofrer para compor o cardápio do dia.

O surto se agravava mais ainda com questões relacionadas à vontade de mudança de profissão e à necessidade de encontrar um trabalho que me rendesse mais dinheiro para fazer frente a todas essas demandas. Em resumo, eu estava cansada de cuidar de mim mesma. Mesmo que não o admitisse racionalmente, sentia que precisava de colo e tempo livre para recuperar velhos prazeres abandonados. Foi quando uma desastrada queda me propiciou as condições necessárias para questionar o estranho desejo de renunciar a uma parte da minha autonomia.

Fui derrubada e arrastada por minhas cachorras, que se assustaram durante um passeio. Fraturei o úmero e tive uma fissura no quadril. Resultado: um mês inteiro sem poder andar e dois meses com o braço esquerdo na tipoia (sou canhota), o que significava não poder voltar a morar sozinha nem dar andamento a meu trabalho de tradutora. Ainda pior, tinha de aceitar me desfazer da tutela das cachorras por um longo período ou talvez para sempre. Fui acolhida na casa de uma irmã, que é ótima cozinheira e me mimava todos os dias com pratos especiais; ao mesmo tempo, as cachorras foram abrigadas na casa de um sobrinho, onde parecem estar mais felizes por poderem brincar com outros cachorros e circular sem guia ao ar livre na hora que quiserem.

Passei dois meses totalmente alienada dos eventos do mundo exterior, sem sair à rua, ler jornais, assistir televisão e sem redes sociais. O ensimesmamento não me trouxe nenhum benefício. Ao contrário, vi desfilarem diante dos olhos da minha mente todos os meus defeitos de caráter, minhas hipocrisias, culpas e conflitos interiores. Tive de encarar uma mudança radical de hábitos, como horário de acordar, dormir e comer, e acima de tudo passei a precisar de autorização para fumar. Enfrentei crises infantis de birra do tipo ‘você não manda em mim’ e ataques de rebeldia juvenil do tipo ‘se eu não posso ter o que quero, então não quero mais nada’. Fosse como fosse, eu tinha de admitir: meus desejos secretos estavam milagrosamente se realizando.

Hoje, já de volta à minha casa, mas ainda lambendo as feridas de corpo e alma, sinto ter me transformado numa mistura perfeita de ceticismo e cinismo. Já não acredito na possibilidade de recomeço nem na identificação de outros propósitos de vida. Sei que perdi um dos pilares fundamentais da minha identidade – que era a curiosidade de comparar instintos animais com comportamentos estereotipados humanos.

As únicas lições que tirei desse período de trevas foram:

  • que a necessidade é mãe da invenção,
  • que não há escolhas sem consequências,
  • que é preciso equilibrar o olhar para fora e o olhar para dentro.

E, finalmente, que a resposta para um psiquismo saudável está, como sempre, em seguir o caminho do meio: nem se pretender independente de tudo e de todos, nem se resignar a engolir em seco as regras ditadas por terceiros.

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(*) Myrthes Suplicy Vieira  – é psicóloga, escritora e tradutora.

1 thought on “O desejo da dependência. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Cara Myrthes. Mesmo que eu tenha me afastado da leitura de sites brasileiros (natural, já que eu e minha mulher legalmente nem somos mais cidadãos desse país pleno de bananas, ou seja, nunca mais poderei votar contra o « Mito »…), pude notar que já fazia tempo que você não andava por aqui. Agora, ao ler teu artigo (por convite de minha mulher, que leu ontem), dou-me conta de que tua ausência se deveu a certas agruras que, a qualquer um, causariam muito aborrecimento. Espero, em todo caso, que você esteja bem e novamente disposta. Como associado-contribuinte (já quase um vegano…) do Animal Rights Watch, torço para que você não tenha sido muito severa com tuas cachorras. Esses bichinhos costumam ser incrivelmente sensíveis, particularmente quando seus tutores (ou procuradores legais, como costumo me apresentar aos veterinários dos meus cãezinhos) olham feio para eles. Tendo antecipadamente certeza de que você não deve lhes ter aplicado muitos sermões, espero que a vida com tuas cachorras tenha-se reconstituído perfeitamente, para o bem das envolvidas.

    Enquanto lia teu artigo, eu pensava no tema que você apresenta. Talvez por incapacidade de compreendê-lo melhor, pus-me a me perguntar se, afinal, toda dependência, seja ou não desejada, não implica aceitação, consciente ou não, de um « outro » a ela justaposto. Não me refiro à « coisa » ilusória, substitutiva, de que se dependerá, mas ao sujeito que leva à « coisa » (tão variado possa ser, como um empregador, um marido, uma esposa, uma clientela, um banco, um proprietário de algo que se quer comprar, uma faxineira, um entregador em domicílio, uma garota de programa, and so on… Não, nossos cãezinhos não fazem parte da lista ; só sabem nos amar. Tadinhos…). Assim, minha pergunta não se refere exatamente ao desejo daquele que transfere para fora de si a pré-condição sua própria condição humana (e, junto disso, uma carga imensurável de responsabilidade), mas ao desejo que existe no « outro », o sujeito que, eleito objeto pré-condicional (e raramente à revelia, penso eu), decide por outrem, o sujeito que pretende escolher em que condições vale a pena ser um objeto. Talvez eu esteja muito errado sobre isso (alerte-me se for o caso), mas penso que relações desse tipo quase nunca se dão fora de um contexto interpessoal em que generosas doses de narcisismo e mecanismos muito sorrateiros e reiterados de poder entram com tudo em cena. E não saem mais. A um sujeito-objetificado, penso, corresponderá sempre um objeto-subjetificado. Lembrando um episódio de Seinfeld (para aqui alterar o sentido da coisa), nenhum deles, numa tal interação, jamais poderá se dizer « Master of his domain »… Em Seinfeld, é apenas uma boa piada (se interessar, procure o episódio « The contest » nos streamings ou em algum canal pago). Na vida real, essa hipoteca de partes importantes da vida cotidiana é apenas natural. Não deixa de ser um tipo de « alienação » – aliás, outro termo encontrável nas transferências de imóveis, só faltando definir quem, nessa história de dependências, será o credor, e quem é o devedor…

    Forte abraço.
    PS. Cuidado com as calçadas brasileiras. Pelo que sei, derrubam mais que qualquer cachorro.

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